Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Lá e cá

Por que somos o que somos? Os colonizados têm o privilégio de comparar-se aos colonizadores. Os herdeiros dos antigos impérios podem olhar-se à vontade no grande espelho histórico-antropológico para se avaliar e se entenderem. A recíproca, aparentemente, não é válida porque os antigos dominadores, seja por sentimento de culpa ou resquícios da antiga onipotência, não gostam de submeter-se a qualquer tipo de escrutínio.

Ingleses, portugueses e espanhóis espalharam fac-símiles pelos quatro cantos do mundo, ao contrário dos franceses, cujos clones nas Antilhas, África, Oriente Médio e sudoeste asiático são bem mais toscos do que a matriz (exceto o Canadá). Em compensação, os gauleses ofereceram ao mundo um legado cultural que transcende o domínio político e territorial.

Norte-americanos e australianos são reproduções parciais dos britânicos, assim como argentinos dos castelhanos e nós, da Lusitânia. A miscigenação decorrente das sucessivas ondas de imigrantes (inclusive escravos africanos) enriqueceu e transcendeu a galeria original de arquétipos, mas não evitou que as estruturas e instituições deixadas além-mar reflitam as mentalidades dos antigos impérios.

Intolerância persistente

O Brasil talvez não esteja reproduzido nas esquinas e colinas da antiga Corte (a não ser algumas semelhanças topográficas entre o Rio e Lisboa), mas nós estamos aqui, ou melhor, o legado português continua aí. Devidamente adaptado, expandido, tropicalizado.

Os primeiros 308 anos da colonização, num total de 322, dos quais 285 dominados pela sinistra Inquisição, deixaram traços que não podem ser ignorados, sobretudo depois das penosas experiências dos respectivos Estados Novos (o português durante 48 anos e o nosso, 15).

Interessam as diferenças, os feitos, as respostas aos desafios que apareceram depois. A mais importante foi Portugal tornar-se finalmente europeu não apenas por força das circunstâncias geográficas e das novas condições geopolíticas, mas em decorrência da inevitável inclusão sociocultural naquele que erroneamente é chamado Velho Mundo e, na realidade, é o mais feliz fruto do acúmulo de sabedoria com sofrimento.

Ser europeu hoje não significa apenas a posse de um passaporte transnacional. É um passo para a superação das ferozes e seculares xenofobias que culminaram com os dois mais catastróficos confrontos bélicos da história da humanidade. Persistem núcleos de intolerância contra as minorias, mas ruíram as fronteiras nacionais, as alfândegas, as dominações e, livres delas, surgem traços de uma identidade européia, experiência única em matéria de convívio entre os povos.

Opções diferenciadas

Dado relevante que separa o Brasil de Portugal e tende a torná-los mais diferenciados e distanciados é o sistema de governo. O parlamentarismo (dominante na Europa ocidental) reforça a vida partidária, permite alternâncias menos traumáticas, tende a eliminar o caudilhismo (Silvio Berlusconi é o único remanescente), cria uma cultura política menos selvagem e estimula práticas administrativas mais escrupulosas. O novo vexame oferecido pela família Sarney para fortalecer a base de apoio ao presidente Lula seria, no parlamentarismo, rigorosamente inútil.

Os socialistas certamente substituirão a coligação centro-direita no comando do país, como indicam as sondagens eleitorais para as urnas de 20 de fevereiro, sem as exaltações, atropelos e quebras de decoro que marcaram nosso recente pleito municipal.

Se o turismo e as telenovelas somadas ao idioma e ao passado comum promovem aproximações em matéria de exterioridades, as opções institucionais e existenciais cada mais vez mais diferenciadas tendem a nos converter em antípodas. Uma pena.