Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O ser unânime

Muitas pessoas, sem pensar, empregam a terrível afirmação de Nelson Rodrigues: ‘Toda unanimidade é burra’. E imagino que o próprio Nelson chamaria de ‘cretinos fundamentais’ ou de ‘grã-finas com narinas de cadáver’ (dependendo do caso) aqueles a quem ouvisse repetir esta sua famosa frase.

Trata-se, como é óbvio (óbvio ululante!), de uma frase de efeito. Como aquela outra: ‘Nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais’. Ou esta: ‘Um suicida já nasce suicida’. Expressões que Nelson colecionava para nos fazer refletir, para provocar polêmica, e não para encerrar discussões ou aumentar o número de lugares-comuns.

Frase de efeito que é também armadilha de Nelson. Quando todo mundo, afinal, concordar que toda unanimidade é burra ficará comprovado que toda unanimidade é burra mesmo!

A palavra ‘unanimidade’ vem do latim unanimis. Significa, muito simplesmente, que duas ou mais pessoas vivem com um (unus) só ânimo (animus). Um time de futebol bem treinado, uma equipe de trabalho bem articulada, dois amigos leais, um casal que pensa e age em harmonia são exemplos de unanimidade inteligente.

Ser perfectível

Em dados contextos, sim, a unanimidade pode ser burra. É burrice obedecermos a ordens que vêm não se sabe de onde com finalidades obscuras ou inconfessáveis. É burrice acreditarmos em tudo o que se escreve na internet. É burrice comprarmos um livro pelo único fato de ele constar da lista dos mais vendidos.

Unanimidade inteligente começa na alma de cada um. Começa na individualidade. Na luta pessoal contra nossas intolerâncias, contra essa tendência a só sentir as próprias dores, a observar o mundo pelo buraco de um canudinho.

Unanimidade inteligente requer a liberdade de distinguir entre o direito nosso de questionar e o dever nosso de comprometer-nos. Requer, mais ainda, a capacidade de reconhecer que podemos estar errados e a maioria estar certa…

Existem unanimidades excepcionais. Os especialistas da educação são unânimes ao afirmar que todo aluno, por mais apático que pareça, pode descobrir o prazer de aprender. Esta verdade ajudará os professores a trabalharem com mais ânimo, mais esperança.

Espero que sejamos unânimes, também, quanto a certos princípios e valores que nos obrigam a repensar nossa conduta, pedir perdão, desdizer o que dissemos, enfim, melhorarmos como pessoas.

O ser humano (jamais um ser unânime?) é perfectível. Seremos mais humanos se formos unânimes naquilo que valha a pena. Se participarmos, conscientemente, da unanimidade produtiva, inteligente.

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Doutor em Educação pela USP e escritor