Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“Quando você percebeu que tinha duas mães?”

Sábado à noite. No Altas Horas, um dos poucos programas da grade das emissoras televisivas que ainda consegue manter algum contato com uma juventude hipermidiatizada, um diálogo se concretiza. Um jovem de 14 anos, chamado André Lodi, participa de um debate sobre casais homoafetivos. Ele é filho de duas mulheres homossexuais. O formato do programa pressupõe uma sabatina pela plateia formada por adolescentes, e alguns jovens pedem a palavra para fazer perguntas.

Programa Altas Horas / Globo Play

Programa Altas Horas / Globo Play

Repetem as dúvidas atreladas ao senso comum (que provavelmente reverberam aquilo que ouvem na escola, em casa, na internet) sobre se ser filho de casais homossexuais “atrapalha ou não o desenvolvimento da criança”. Um menino, provindo de uma família a quem automaticamente define como “normal”, questiona-o sobre como foi o “choque” ao perceber que tinha duas mães. A resposta de André é algo azeda, mas simples e certeira: “quando você percebeu que tinha um pai e uma mãe?”.

Em mais um episódio de um programa qualquer, a cena viraliza nas redes: as respostas de André Lodi passam a ser compartilhadas e replicadas compulsivamente por aqueles que enxergam nela um “momento histórico na televisão”. Ali, algo imprevisto – um comentário pontual e sucinto, gerado por um convidado e não um momento roteirizado – encontra consonância com o que pensa boa parte da população. Na fala espontânea de um adolescente, uma mensagem importante: para que certos discursos comecem a se assentar na cultura, é preciso que eles se naturalizem, percam estranhamento, para que aos poucos as pessoas não repitam (inconscientemente, seria bom destacar) frases como “não tenho preconceito, mas numa família normal…”.

Obviamente, como mídia que se baseia sempre em uma audiência grandiosa, é esperado que a televisão também se aproprie dos discursos que circulam socialmente, mas, mais do que isso, que esteja também atenta a como faz circular estes discursos – ainda que, por vezes, isso ainda ocorra por meio de um viés razoavelmente panfletário, declarado. É isto o que acontecia, por exemplo, com as mulheres da novela A Regra do Jogo, que encontravam empoderamento de uma forma absolutamente explícita.

Ou seja, para que algumas personagens da novela pudessem trilhar uma trajetória associada aos discursos atrelados à independência das mulheres (que hoje se tornam cada vez mais comuns, felizmente) era preciso que elas expusessem esta posição a todo instante: vou criar meu filho sozinha, não vou usá-lo para “segurar homem”, não sou dessas mulheres que se casa por dinheiro e sim por amor, quero alguém que me trate bem e não que me sustente.

Note-se, por exemplo, que hoje um discurso oposto a este causaria mais estranhamento, e atrelar-se a esta posição nem sempre signifique mudanças efetivas nas pessoas (por consequência, fica aqui uma provocação: será que assumir esta posição feminista a altos brados significa, necessariamente, alterações profundas e empoderamento de quem fala?).

A naturalização dos discursos na mídia

Ok, o discurso é importante, e é preciso que ele esteja presente e seja repetido nas telas. Mas, como já dito, mais importante do que se diz, às vezes, é como se diz. De uma fase necessária do discurso trabalhado no excesso, é preciso ir além, e pensar num consequente processo de naturalização deste discurso na televisão. Vejamos, por exemplo, algumas conquistas já concretizadas em outros ambientes midiáticos, como nas séries americanas.

Destaco aqui dois exemplos. O primeiro é a série How to Get Away with Murder, série dramático-policial produzida pela superpoderosa Shonda Rhimes, responsável também por grandes sucessos como Grey’s Anatomy e Scandal. How to Get Away with Murder não é exatamente brilhante, mas tem um trunfo e tanto: sua protagonista Annalise Keating é encarnada por uma atriz negra (a talentosíssima Viola Davis), e vários outros personagens da série são vividos por negros. Mas há algo a ser captado na sutileza: a série não trata, ao menos não explicitamente, de questões raciais.

Os atores negros estão lá como todos os demais membros do elenco, e não para preencher uma cota, e muito menos para desenvolver papéis subalternos, menores (vale dizer, inclusive, que Annalise Keating é a cabeça a comandar todos os demais membros da série, incluindo homens, mulheres, sejam negros, brancos, orientais, mais jovens ou mais velhos que ela).

Não por acaso, vários veículos já se atentaram a essa espécie de “tomada do poder” pelas vias do discurso protagonizada na televisão por mulheres negras, sempre pelas beiradas. O mesmo tem ocorrido, por exemplo, no discurso acerca das mulheres plus-sizeque aos poucos conseguem redefinir padrões na mídia.

No outro exemplo, a série do Netflix Master of None, uma espirituosa comédia produzida e estrelada pelo comediante Aziz Ansari, que é indiano. Em certo episódio, denominado “Indians on TV”, o protagonista Dev Shaw (encarnado por Ansari e que também é um ator) faz um teste para uma série, para interpretar um personagem indiano. Quando ele e outro amigo, também indiano, saem-se bem no papel, o produtor da série expõe um problema que impossibilita a contratação de ambos. Se, em uma série, o protagonista é indiano, a série vai parecer tolerante, “conectada”, “politicamente correta”; mas se dois personagens forem indianos, ela se tornará “uma série sobre indianos”.

Ironicamente, Master of None contribui à causa dos imigrantes por não ser uma série sobre indianos (Dev Shaw, por exemplo, não tem qualquer sotaque estereotipado a la Raj do The Big Bang Theory ou a latina opulenta Gloria em Modern Family), mas sim uma série sobre um jovem novaiorquino que ocorre de ser filho de pais indianos. Como se pode comprovar ao assistir à série – que traz uma reflexão bastante profunda sobre raízes e tradições, ainda que se trate de uma comédia – não se trata aqui de um processo de aculturação.

No fim das contas, o ar blasé do menino André Lodi, ao ser questionado sobre como é ter duas mães, carrega uma mensagem bem mais contundente do que pode parecer à primeira vista. Há de se chegar o momento em que uma pergunta como essa cause absoluto estranhamento, e mesmo certo um azedume em quem a ouve, sendo então reconhecida como a exceção, e não a regra. A televisão, como esta plataforma privilegiada para a normalização dos discursos da cultura, tem um papel fundamental nessa transformação.

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Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha