Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O que se esconde sob uma cobertura

Há momentos em que fazer bom jornalismo não basta. Momentos em que a linearidade e correção comprometem a missão do jornalismo, e em que somente com a ruptura de paradigmas se consegue realmente interpretar a realidade em seu ponto de mutação. São raros esses momentos, e é preciso que os jornalistas estejam preparados para lhes dar o tratamento incomum que eles exigem.

Foi assim em 1969, quando o jornalista Seymour Hersh conseguiu retirar o véu sobre os fatos ocorridos na aldeia vietnamita de My Lai, onde a unidade do exército americano denominada Companhia Charlie, sob o comando do ensandecido tenente William Calley Jr., havia, no ano anterior, massacrado 300 civis, na maioria mulheres, crianças e velhos desarmados.

Também foi assim em 1972, quando os editores do Washington Post resolveram apoiar Bob Woodward e Carl Bernstein na investigação sobre uma operação ilegal de escuta na sede do comitê nacional do Partido Democrata, dando curso a uma história cuja principal fonte, anônima, atendia pelo apelido de ‘Garganta Profunda’.

Foi num momento como esse, de ruptura, que a imprensa brasileira, quase em unanimidade, resolveu dar um basta às estripulias do governo Collor e, contrariando os aparentes interesses de seus controladores, foi buscar as provas da corrupção onde as autoridades não as enxergavam.

O Post derrubou Nixon, os grandes jornais brasileiros, com a destacada participação das revistas semanais e da Rede Globo, criaram as condições para o impeachment de Fernando Collor, os 32 jornais americanos que abrigaram a reportagem de Hersh permitiram que o establishment militar americano fosse exposto em toda sua insanidade, enriquecendo a história do jornalismo com o cumprimento em mais alto grau do seu mais nobre papel. Momentos como esse exigem mais do que talento jornalístico.

Edições rotineiras

Uma cobertura correta, bem-intencionada, com esforçados testemunhos de repórteres brasileiros, talentosos e experientes repórteres presentes aos principais locais dos eventos, marcou os primeiros dias da cobertura dada pela imprensa nacional do maior atentado perpetrado em território espanhol. Uma sucessão de artigos relacionando o massacre de Madri aos atentados em Nova York e Washington, em 11 de setembro de 2001, deu o necessário giro histórico para situar o leitor num contexto mais amplo do que a tragédia em si.

Clóvis Rossi conduziu bem o leitor da Folha de S.Paulo a refletir sobre os traumas do país que esteve envolvido em sangrenta guerra civil entre 1936 e 1939, e que ficou desde esse período submetido à ditadura de Francisco Franco Bahamonde até 1975. Luiz Carlos Ramos, do Estado de S.Paulo, misturou-se à multidão para narrar a seus leitores como a Espanha expressou sua dor e pragmaticamente, pelo voto, manifestou seu repúdio à tentativa de manipulação do noticiário por parte do governo de José Maria Aznar em função da proximidade das eleições.

Mas não têm bastado a competência e a correção. Os atentados de Madri representam muito mais do que os esforçados editores apresentaram ao leitor, em meio ao trabalho de seus repórteres e à fartura de material despejado em seus computadores pelas agências de notícias. No fundo, o noticiário se repetiu sob os diversos logotipos e articulistas conservadores e defasados nos remeteram de volta à Guerra Fria.

Quando o terror nos informa que nada será como antes, que os bilhões de dólares investidos em sofisticados sistemas de mísseis intercontinentais são uma verdadeira inutilidade contra uma mochila cheia de explosivos deixada num vagão de trem, obriga-se o leitor a reler as mesmas idéias e os mesmos argumentos que recheiam as páginas das edições rotineiras.

Se é verdade que pouco ou nada se pode avançar, a partir da redação, em termos de informação objetiva sobre os eventos de Madri, também é verdade que as escolhas em geral têm revelado que aplicou-se sobre a edição o plano estratégico comum do gênero: nosso homem no local, o melhor das agências, um panorama histórico. Só faltou o infográfico sobre quem-ganha-quem-perde com os atentados. Com isso, tivermos uma boa cobertura factual, e só.

Corrupção e terrorismo

A televisão e a internet estiveram mais ricas nesse sentido estrito – a primeira porque nos oferece imagens e sons locais, a segunda porque, além de acrescentar o texto, abre a possibilidade do leque infinito de links até a última fronteira dos blogs, que instantaneamente inundaram a rede com gravações de conversas telefônicas de vítimas e testemunhas, confissões de policiais e bombeiros, bastidores da campanha política que fazia pano de fundo para a tragédia.

A imprensa perde em interatividade e em estímulos visuais e auditivos. Se as fontes de informação objetiva são limitadas pela impossibilidade de um Ramos ou um Rossi estarem em mais de um lugar ao mesmo tempo, e se as fontes das agências estão pasteurizadas e vulgarizadas, ainda há o recurso de rastrear a rede de anônimos que, como um sistema extremamente capilarizado, consegue em um ou dois graus de aproximação se colocar ao lado de um protagonista ou junto a uma vítima. Os cordões de isolamento não os impedem. Suas fotos, sacadas com pequenas câmeras digitais ou com telefones celulares, já formam álbuns mais ricos do que aqueles que encontramos nas galerias dos jornais. Assim como os terroristas, os internautas ativos, ou webprotagonistas, parecem ter o poder de se infiltrar em qualquer ambiente. Só não conseguem chegar às mesas dos editores.

Com escolhas conservadoras na edição, a imprensa perde também a oportunidade de oferecer ao leitor um olhar mais profundo sobre a ruptura que os atentados de Madri representam no quadro das relações internacionais e no modo como teremos de viver, daqui para diante, nas grandes cidades de qualquer país.

Espalhar a massa das informações sobre a velha tela que ainda separa política de economia, Ocidente de Oriente, ‘civilizados’ de ‘bárbaros’, é apostar em paradigmas que já não são suficientes para explicar a vida presente.

As análises que o leitor tem recebido não contemplam, por exemplo, a responsabilidade do sistema financeiro internacional na migração e validação de recursos que conectam a corrupção e o crime organizado ao terrorismo. No entanto, em qualquer conversa de botequim os cidadãos mais atentos dão mostras de entender as relações entre a liberdade com que um mafioso monta uma rede de máquinas de jogo viciadas numa cidade brasileira e a rede de proteção que traficantes e contrabandistas alugam para terroristas na tríplice fronteira de Foz do Iguaçu. Ou a facilidade com que uma arma de alto poder de fogo viaja entre uma favela do Rio de Janeiro e uma fazenda no interior do país, podendo ser usada para o assassinato de um fiscal que investiga o trabalho escravo.

É desse mundo, no qual o poder do Estado se esfacela diante da ação de indivíduos altamente organizados e solidamente financiados, que não nos fala a imprensa ao relatar a tragédia de Madri. É nesse mundo que teremos de viver, daqui para a frente.

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Jornalista