Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Terrorismo e alienação

Difícil definir, em poucas palavras, para que serve a ciência. Uma solução, talvez, seja considerar que a função da ciência é fornecer uma inteligibilidade possível sobre a realidade, ou o que aprendemos a considerar realidade, com todos os desdobramentos de uma abordagem dessa natureza.

Se aceitarmos essa consideração devemos levar em conta que, nos próximos dias, estendendo-se pelo futuro imediato, os acontecimentos em Madri, e em seguida por toda a Espanha, irão exigir muito trabalho dos cientistas sociais com repercussões profundas no jornalismo.

Qualquer pessoa medianamente informada sobre o que acontece no mundo duvidaria, desde o primeiro momento, da versão apresentada pelo governo direitista de José Maria Aznar sobre quem realizou os atentados em Madri, matando e ferindo centenas de pessoas.

Era conveniente ao Partido Popular (PP) de Aznar que o atentado tivesse partido da organização separatista Pátria Basca e Liberdade (ETA, na língua basca), ainda que todas as características fossem em sentido contrário.

Essa conveniência é parte de uma estratégia cínica, fascista mesmo, de se manter no poder a custo do falseamento do real, em total desrespeito à inteligência da sociedade e num momento de profunda comoção psicológica.

A mídia, num primeiro tempo, mesmo levando em conta a possibilidade de os atos serem de outra responsabilidade, fez eco preguiçoso e conservador à versão oficial. A negativa enfática de representantes bascos, acompanhada de uma carta divulgada por um jornal árabe editado em Londres reivindicando o atentado por uma outra organização, não foram suficientes para deslocar a versão oficial.

No Brasil, ainda no domingo (14/3), jornais como O Estado de S. Paulo seguiam com fidelidade canina essa linha suspeita. Evidência disso é o comentário patético de Carlos Alberto Montaner (‘jornalista e escritor cubano’), na página 2, responsabilizando, por puro faro ideológico, a organização basca pelos atentados.

A virada do Partido Socialista Obrero Espanhol (PSOE), no entanto, mostrou que a população espanhola fez seu julgamento sobre os acontecimentos e o veredicto diz que o governo dirigido por Aznar mentiu e tentou enganar os cidadãos.

Uma nação inteira fez isso antes de as redações atinarem para o que estava em curso.

‘Causa principal’

O governo dirigido pelo arrogante Aznar tentou, sem sucesso, o que conseguiram antes dele o historiador-cowboy George W. Bush nos Estados Unidos e o roqueiro sem talento Tony Blair, na Inglaterra.

A reação da população espanhola que havia majoritariamente condenado a participação do país na invasão do Iraque traz esperança de que alguma coisa possa estar mudando e remete à leitura do que escreveram dois grandes intelectuais do passado.

O primeiro deles é um espanhol mesmo, o filósofo Jose Maria Ortega y Gasset (1883-1955) e seu estilo algo jornalístico de pensar e escrever. O outro é Michael Alexandrovich Bakunin (1814-1876) intelectual russo originário de uma rica família proprietária de terras e o mais brilhante dos anarquistas históricos.

Há muitos pontos em comum entre esses homens. Dois deles estão no fato de ambos terem se exilado fugindo de governos ditatoriais e fundado organizações capazes de propagar as idéias que defenderam. Ambos estão, além disso, profundamente ligados à história da Espanha e a movimentos filosóficos sem fronteiras para retirar os homens, independente de onde tenham nascido, da miséria da restrição filosófica em benefício da busca de sua humanidade na libertação movida pela investigação crítica.

Ortega y Gasset filiado à escola neokantiana e professor de metafísica em Madri antes do exílio voluntário entre 1936-45, quando passou parte da vida na Argentina, fundou periódicos como Espanã (1915), El Sol (1917) e a revista Occidente (1923).

É de Ortega y Gasset a famosa expressão ‘Eu sou eu e minhas circunstâncias’, no sentido de localizar o homem como um produto da cultura enquanto ambiente de origem e desenvolvimento. Entre suas obras mais conhecidas está Rebelião das massas (La rebelión de las massas), de 1920, na qual denuncia o século 20 como um tempo dominado pelas massas de indivíduos indistinguíveis.

Se pudesse retomar seus escritos plenos de velocidade e síntese (que, entre nós, só conseguiu fazer Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil), Ortega y Gasset talvez redimisse a Espanha por sua condenação nas urnas à tentativa trapaceira de Aznar e seus comandados.

Quanto a Bakunin, em A Ilusão do Sufrágio Universal, um texto curto como era de seu estilo, demole como uma carga de dinamite o conceito frágil e restrito que políticos oportunistas (o que quase todos são) e jornalistas superficiais sustentam sobre a democracia.

Certamente vale a pena repetir um curto trecho de A ilusão… que é útil tanto para a Espanha como para o Brasil ou qualquer outro país deste mundo pequeno, confuso e cada dia mais violento:

‘Toda a decepção com o sistema representativo está na ilusão de que um governo e uma legislação surgidos de uma eleição popular deve e pode representar a verdadeira vontade do povo. Instintiva e inevitavelmente, o povo espera duas coisas: a maior prosperidade material possível combinada com a maior liberdade de movimento e de ação. Isto significa a melhor organização dos interesses econômicos populares e a completa ausência de qualquer organização política ou de poder, já que toda organização política destina-se à negação da liberdade. Estes são os desejos básicos do povo’.

Bakunin, fundador do movimento anarquista-histórico, que morreu com a destruição das organizações anarco-sindicalistas espanholas em 1939, considera que…

‘…os instintos dos governantes, sejam legisladores ou executores das leis, são diametralmente opostos por estarem numa posição excepcional. Por mais democráticos que sejam seus sentimentos e suas intenções, atingida uma certa elevação de posto, vêem a sociedade da mesma forma que um professor vê seus alunos, e entre o professor e o aluno não há igualdade. De um lado há o sentimento de superioridade, inevitavelmente provocado pela posição de superioridade que decorre da superioridade do professor, exercite ele o poder legislativo ou executivo. Quando existe dominação, uma grande parcela da sociedade é dominada e os que são dominados geralmente detestam os que os dominam, enquanto estes não têm outra escolha a não ser subjugar e oprimir aqueles que dominam’.

Para Bakunin…

‘…esta é a eterna história do saber político, desde que o poder surgiu no mundo. Isto é, o que também explica como e por que os democratas mais radicais, os rebeldes mais violentos, se tornam os conservadores mais cautelosos assim que obtêm o poder. Essas retratações são geralmente consideradas atos de traição, mas isso é um erro. A causa principal é apenas a mudança de posição e, portanto, de perspectiva’.

Xadrez político

Ortega y Gasset, à sua maneira um defensor da individualidade, para ele uma realidade fundamental, e Bakunin, um anarquista com abordagem parecida, sem dúvida não veriam na eleição do socialista José Luis Rodrigues Zapatero, o substituto de Aznar, a solução para o drama da Espanha refletindo a Europa e o que chamamos Ocidente.

Mas a questão, aqui, não é mesmo de solução. É mais de rebelião, de resistência em aceitar a mentira, a versão fraudulenta, como a verdade imposta autoritariamente. Talvez possa ser o começo de alguma coisa que não sabemos ainda onde nos levará.

As versões políticas (e econômicas) fraudulentas, neste momento, se acumulam como as pedras que formam a Grande Muralha da China sem que os cientistas sociais sejam capazes de trocar uma mesmice irritante por uma reflexão mais promissora.

Os economistas, em sua maioria, para dar um exemplo, talvez não tenham mesmo o que dizer. A lógica pobre que aprenderam a utilizar prescinde da história, da geografia e da cultura enquanto constelação de valores fundamentais. Esses pobres homens – para quem a arrogância substituiu a reflexão – têm no mercado o único dado que conta.

A literatura, os escritores, como acontece desde que os homens aprenderam a falar, tem sido uma fonte de resistência e estímulo crítico – pouco importa se se encaixa ou não no universo das ciências sociais.

Intelectuais do porte de Noam Chomsky e Susan Sontag, no entanto, passaram por um linchamento moral quando se posicionaram criticamente em relação a um outro 11, o inesquecível 11 de Setembro, que destruiu não apenas as Torres Gêmeas mas despedaçou parte do Pentágono, o Forte Apache contemporâneo, nos Estados Unidos.

O que os cientistas sociais devem à sociedade humana, neste momento da história, é oferecer uma inteligibilidade possível para esses acontecimentos duros, aterrorizantes mesmo.

Por que ocorreu o indesejável atentado de Madri? E a palavra indesejável, aqui, não é casual. É proposital. Qualquer pessoa com um mínimo de equilíbrio deve condenar iniciativas como esta. Mas se estas coisas estão ocorrendo na velocidade em que estão, é preciso compreender o mecanismo delas. Os artigos pífios dos jornais, como o escrito politicamente ressentido de Montaner, não passam de uma farsa tão abjeta como a manipulação de políticos do calibre de Aznar e seu grupo. E este tipo de escrita tem espaço livre, sem nenhuma confrontação crítica.

Pode-se aceitar com facilidade, a título de exemplo, que Fidel Castro e sua conversa fiada de horas a fio não resistam a uma curta visita à fortificada ilha de Cuba, com prostituição, corrupção e outras mazelas do ‘imperialismo’. Mas os anticastristas não são nem um pouco melhores e os escritos produzidos por esta gente não têm nada a contribuir para a formação de um juízo crítico contemporâneo.

A compreensão da tragédia de Madri deve levar em conta um xadrez político internacional, o que é de uma obviedade solar, mas nem por isso considerado enquanto referência para considerações críticas. Essa é a camisa de força da ideologia.

Desenvolvimento crítico

É possível ter paz no mundo após o ataque sangrento que os Estados Unidos fizeram no Iraque, teoricamente para retirar um ditador sanguinário que eles mesmo criaram e financiaram para defender interesses mundanos no Oriente Médio?

É possível haver paz no mundo com o bombardeio sistemático de campos de refugiados palestinos por um truculento governo israelense que aplica, agora, com refinamento, o tratamento que judeus sofreram em campos de concentração nazistas?

É possível pensar em paz, em bem-estar social, sob a sangria do neoliberalismo, sustentado por poder militar, que empobrece e devasta nações como é o caso da Argentina, mas, também, do Brasil e, além, de um continente inteiro como a África?

Mesmo a ETA, com métodos discutíveis, deve ser situada historicamente. A organização basca nasceu sob uma das mais cruéis ditaduras do século passado. O generalíssimo Francisco Franco assassinou desafetos com métodos inquisitoriais, como o garrote vil, até meados dos anos 1970, quando a morte, finalmente, o levou.

O jornalismo preguiçoso, comprometido ideologicamente, tocado por empresas com a mesquinharia típica de certas estruturas familiares, não tem olhos para a realidade e confunde os acontecimentos pelo mundo afora com seus próprios devaneios de poder despótico. Este é um dado significativo para a cultura no Brasil.

Desde que a internet se consolidou como veículo de comunicação planetário haveria necessidade de mudanças profundas no jornalismo e nas escolas de jornalismo para ampliar minimamente os efeitos desse impacto. Mas o poder no interior das redações é cada vez mais despótico, arrogante e alienado. Prova disso é a deterioração, a decomposição mesmo, do ambiente de trabalho. A maior revista semanal brasileira é a melhor evidência disso.

O que é profundamente necessário é a prática de jornalismo interpretativo, jornalismo contextualizado historicamente para fornecer uma inteligibilidade possível. O que pensam ou avaliam A, B ou C pouco importa. Até porque, com raríssimas exceções, as colunas de opinião não revelam outra coisa além da formação intelectual precária de seus titulares e suas limitações ideológicas. No jornalismo moderno, necessário para o desenvolvimento crítico, as colunas de opinião tendem a ser extintas como desajeitados e incompatíveis dinossauros.

O jornalismo interpretativo é o campo novo do jornalismo enquanto sub-área das ciências do comportamento. A evidência disso também está nos jornais e é praticada por gente como Robert Fisk, que trabalha para o diário britâncio The Independent. Mas ainda é uma presença muito tímida.