Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

E quando o jornalista julga o STF?

Na quarta-feira (2/5/2012), o jornalista Caiã Messina, direto de Brasília, noticiou no Jornal da Band o resultado do julgamento da disputa de terras entre índios pataxós e fazendeiros na Bahia. Disse o jornalista que, por maioria de votos, o STF deu vitória aos índios considerando nulos os títulos de propriedade dos fazendeiros. O trabalho do jornalista deveria acabar neste ponto. Porém, aparentemente insatisfeito com a decisão, Caiã disse então duas coisas relevantes: 1) os ministros teriam ignorado relatórios de técnicos do STF que afirmavam que as terras não são indígenas; 2) o STF não teria decidido quem vai indenizar os fazendeiros pelas propriedades.

Aqui mesmo no Observatório já critiquei o Jornal da Band em razão da cobertura deste episódio (ver aqui). Retorno ao tema por amor ao Direito e, sobretudo, porque não tolero abusos jornalísticos. Caiã é jornalista e, portanto, ao fazer a cobertura de um tema jurídico tão importante e num horário tão sensível, deveria ser mais cuidadoso. Não me parece que seja da competência dos telejornalistas julgar decisões judiciais. Decisões judiciais – especialmente aquelas proferidas pelo STF – são finais e se tornam Lei entre as partes. Uma vez resolvida pelo STF, a disputa judicial deixou de existir. Goste ou não a sociedade e o Estado, terão que se submeter ao comando judicial supremo. Portanto, não é razoável que um jornalista questione o conteúdo, o rigor ou a validade da decisão proferida pelo mais importante tribunal do país reacendendo uma disputa que já foi resolvida.

Um estrago irreparável

O pior é que as duas objeções levantadas pelo jornalista da Band são juridicamente maliciosas. Em primeiro lugar, no sistema processual brasileiro o juiz nunca está adstrito às conclusões dos técnicos que o auxiliam. O julgador profere a decisão levando em conta a prova pericial, sim, mas não tem obrigação de acolher a recomendação do técnico. Afinal, não é o técnico que decide a lide porque lhe falta competência funcional e teórica para aplicar a Lei ao caso concreto. Quando profere sua decisão dizendo o Direito no processo, o juiz pode se convencer que a conclusão do técnico não foi juridicamente adequada. Nestes casos, o único dever do juiz é fundamentar sua decisão, o que certamente os ministros do STF fizeram de maneira adequada no caso em questão.

Em segundo lugar, uma vez anulados os títulos de propriedade – porque as terras pertencem à União e foram destinadas de maneira legal aos indígenas –, o jornalista não poderia vir a público exigir indenizações que a rigor são indevidas. Se alguém foi prejudicado nesta história não foram os fazendeiros; foi a União e os índios Pataxós. A rigor, os fazendeiros cujos interesses têm sido acintosamente defendidos pela Band ocuparam terras que não eram deles e tiraram proveito econômico do que não lhes pertencia por mais de 30 anos. Portanto, o Direito não pode e não vai socorrer aqueles que invadiram terras indígenas.

O jornalismo às vezes peca por falta de isenção. Mas neste caso pecou por falta de informação. Caiã não é advogado. Se tivesse consultado um, não teria induzido seu público a erro. O estrago provocado pelo jornalista, entretanto, é imenso e irreparável. Em 02/05/2012, o respeitável público do Jornal da Band ficou com a impressão de que o STF não fez justiça ou que Caiã Messina tem mais condições de dizer o Direito do que os ministros daquele Tribunal.

Neocolonialismo e jornalismo

A ideologia por traz deste tipo de jornalismo não é muito evidente, mas pode ser imaginada.

Caiã Messina deu a entender que tem melhores condições de julgar disputas de terras do que os experientes e cultos ministros do STF. Portanto, o jornalista comportou-se como um verdadeiro César, que acima de todos os senadores e cidadãos romanos dizia o Direito segundo sua vontade. A câmera digital ultramoderna pode ter substituído a antiga cadeira curul romana, mas todos sabem que César se deu mal, menos o jornalista que o imitou, é claro.

O jornalista anunciou a anulação dos títulos de propriedade e, do alto de sua cultura jurídica, decretou que os fazendeiros devem ter suas propriedades indenizadas. Portanto, ao julgar a decisão do STF, o jornalista transportou os telespectadores televisivamente para o Brasil colônia. Caiã deu a entender que, apesar de séculos de evolução jurídica, hoje, como no século 16, índio nunca tem razão e as razões dos homens brancos são maiores que a própria Lei em vigor dita pelo STF ao caso concreto.

No passado, as razões dos colonos (sabre, arcabuz e canhão) derrotaram os índios. O microfone, a câmera digital e a banda pública de transmissão de ondas de TV são as razões neocoloniais da Band. Mas desde quando neocolonialismo é sinônimo de jornalismo?

***

[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]