Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Agonia contemplativa

O escritor e jornalista George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair (1903-1950), deixou duas importantes obras literárias que servem de vaticínio para as sociedades contemporâneas: 1984 (1949) e Animal Farm (A Revolução dos Bichos, 1945), ambas amplamente conhecidas. De modo frequentemente superficial, tais livros são interpretados como ficções representativas de regimes despóticos, supostamente mais comuns na Alemanha nazista, na Itália fascista e na URSS comunista. Ao revés, é possível distinguir as características daquele totalitarismo nas pretensas democracias do século 21. A começar pela infeliz “coincidência” entre os textos de Orwell e os dois principais reality shows da televisão brasileira, a saber, o vetusto Big Brother Brasil e o mais recente A Fazenda.

O “Grande Irmão”, em 1984, é uma espécie de ditador virtual, ou seja, está presente mesmo estando ausente. Seu poder manifesta-se por meio de telas que preenchem tanto o espaço público quanto o espaço privado. Os cidadãos o temem apenas ao imaginar que Ele pode estar à espreita, pronto para punir qualquer desvio de conduta, inadequado aos ditames do Estado. No Big Brother da Rede Globo, bem como nas demais versões internacionais, não é tão diferente. Sem entrar no mérito da possibilidade de os participantes serem regidos, o fato é que se portam como se soubessem – e o sabem – estar sob observação. A espontaneidade, nesse caso, é quase nula. O importante é encarnar personas ou, mais precisamente, estereótipos de fácil e auto-identificação pelos telespectadores. Daí as qualidades serem as mais prosaicas: o temperamental, o líder nato, o sentimentalista, o comparsa, o estrategista, o oportunista.

Instrumento ideológico

Já na fábula de A Revolução dos Bichos, Orwell também trabalha com elementos presentes em regimes de exceção, a exemplo das formas estatais de coerção e a violação de direitos fundamentais (civis, políticos e sociais). Numa sucessão de golpes e contragolpes, os porcos Bola-de-Neve e Napoleão, a princípio unidos na sublevação, digladiam-se pela obtenção do poder, que posteriormente irá cegá-los a ponto de negligenciarem o velho ideal da Justiça ante as iniquidades dos homens. O programa da TV Record A Fazenda, apesar de aspirar ser um “recorte” da realidade, um “show da vida”, assemelha-se à alegoria do autor inglês. Diferentemente da família Marinho, o propósito do canal do bispo Edir Macedo é utilizar celebridades, geralmente em plena decadência e cuja importância artística – até mesmo televisiva – ninguém sabe onde foi parar. Não obstante essa pequena diferença, A Fazenda fundamenta-se na construção dos mesmos estereótipos e o roteiro segue o mesmo percurso abjeto (intrigas, sabotagens, paixões efêmeras, festejos orgiásticos). Trata-se, pois, conforme Pierre Bourdieu, do mundo social descrito-prescrito pela televisão, mediante “violência simbólica”, isto é, imposição de determinado paradigma cultural.

Seria um equívoco acreditar que tal modelo de entretenimento reduz-se a enclausurar bichos-humanos em casas, fazendas e pardieiros, a fim de participarem de atividades infanto-juvenis. Para tanto, a análise da palavra entretenimento fornece rudimentos reveladores. Segundo o dicionário Houaiss, o verbo entreter significa prender, desviar a atenção de; distrair; enganar; iludir, lograr; ocupar(-se) de maneira prazerosa; fazer uso de; consumir (espaço de tempo, disponibilidade); tornar mais suave, menos incômodo, suavizar; retardar, dentre outras conotações. Ora, é sabido que o entretido está impossibilitado de agir e, portanto, de projetar perspectivas futuras. Porém, embora entrevado, essa relação que se estabelece entre consumidor e produtor cultural é dialética. Exige compreensão e assimilação recíprocas; exige que ambos mirem o frio reflexo no espelho. Dessa forma, os dois lados consentem na utilização dos meios de comunicação de massa enquanto instrumento ideológico, a serviço do controle social e tão repressivo quanto os aparatos orwellianos.

Controle social

Ideologia, no sentido marxista do conceito, está relacionada à forma invertida de consciência e à existência material dos homens. A distorção do pensamento é oriunda das contradições socioeconômicas e, ao mesmo tempo, as oculta. Em outras palavras, as classes dirigentes lançam mão da ideologia a fim de reproduzirem as condições necessárias à manutenção da ordem vigente. Esse expediente se dá consciente e inconscientemente no terreno da luta de classes, a qual se encontra escamoteada e, paradoxalmente, escancarada. Sob essa ótica, o entretenimento está além dos espetáculos circenses, já que a grande imprensa, comprometida com o poder dominante (leia-se: poder econômico e político), tem, igualmente, interesse em ludibriar e entreter, através da disseminação do “real” que lhe convém. Na mesma linha argumentativa, Jean-François Brient, no documentário De La Servitude Moderne (A Servidão Moderna), afirma que “a imagem segue sendo a forma de comunicação mais direta e mais eficaz. Constrói modelos, embrutece as massas, mente, cria frustrações e infunde a ideologia mercantil. Trata-se, pois, uma vez mais e como sempre do mesmo objetivo: vender modelos de vida ou produtos, comportamentos ou mercadorias”.

Os efeitos do sucesso ululante dos reality shows dispensam pesquisas de opinião. Pode-se dizer que a tosca representação dos “brothers” e dos “peões” impregnou muitas instâncias sociais, quer pública, quer privada: trabalho, política, família, religião etc. Picuinhas e futilidades dominam as pautas das classes menos ou mais favorecidas. Assassinaram o trivial – o que é vulgar, porém comum a todos – em nome do frívolo, cuja ausência de valor o torna irrelevante. Na sociedade de consumo (do capital), os cidadãos-consumidores distraem-se, excitam-se e sentem prazer ao contemplar, qual Narciso, a própria mediocridade. Assim, enquanto a ágora (espaço público e democrático dos gregos) é privatizada, os sujeitos históricos agonizam em sarjetas. Ademais, se nas referidas ficções a resistência à opressão é possível, na realidade ficcional da vida cotidiana torna-se quimera. O controle social descrito por Orwell é patente atualmente, com algumas nuances, é claro: o controle remoto é manejado voluntariamente pelos dominados.

***

[Gabriel Tardelli é jornalista, Niterói, RJ]