Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O rei está nu

Para alguém conhecido, no início da carreira, como “o peru que fala”, graças à vermelhidão causada pela timidez diante do auditório, Silvio Santos passou por uma notável transformação nos 50 anos à frente do programa que leva seu nome. Hoje, está totalmente sem vergonha. Só nos últimos meses, perdeu as calças no ar (e deixou a cena ser exibida), constrangeu convidados com comentários irônicos e maldosos e vem falando palavrões e piadas sexuais em seu programa. Está, como se diz na gíria, “soltinho” aos 81 anos.

A postura tem surpreendido não só as “colegas de auditório”, os convidados e os espectadores, mas seus próprios funcionários. Tem também reavivado o status de ícone para a geração das redes sociais, que replicam vídeos com seus “melhores momentos” pela internet. “Acho que o Silvio Santos nunca atravessou uma fase tão despojada, tão à vontade. Até me assustei um pouco”, diz o apresentador Luis Ricardo Monteiro que, há mais de 30 anos no SBT, precisou lidar recentemente com o patrão detonando no ar os produtos que tentava vender. Para Monteiro, após superar “os problemas que o grupo [Silvio Santos] teve” – fraude no Banco PanAmericano em 2010 e venda do Baú da Felicidade em 2011 –, o empresário “soltou as amarras”. O momento atual se assemelharia, diz ele, aos primórdios do SBT, quando Silvio tinha “um papo reto”.

“Ele falava ‘Olha, podem assistir à novela da Globo, depois começo o filme aqui no SBT.’ Era mais solto e, ao longo do tempo, como presidente da emissora, foi se engessando um pouquinho.”

“Eleacompanha a onda”

Segundo Monteiro, a fase atual “está chocando”, mas também “dando muito resultado” no ibope – de fato, a audiência do programa dominical e do canal como um todo voltaram a crescer, após um período de perda da vice-liderança para a Record. “Sinceramente, acho que ele está gagá. Mas falo isso com carinho, assim como falo da minha avozinha”, diz o apresentador Marcelo Tas, que vem destacando episódios pitorescos do dono do SBT no “Top 5” de seu programa CQC, na Band. “O importante é ele continuar rindo dele mesmo. Faço questão de falar dele com carinho porque todos vamos chegar aí. A diferença é que ele é o Silvio Santos, o dono do canal, então ninguém vai dizer para ele não fazer as coisas que tem feito.”

Nem todos atribuem a fase a uma suposta senilidade. “Velho ele é faz tempo”, diz a atriz Lívia Andrade, a atual professora Suzana de Carrossel (SBT), com o mesmo humor que usou para reagir à frase de Silvio de que “gato escaldado… morre, porra”, num jogo de que ela participava (“Interna!”, reagiu). “Ele continua o mesmo, não tem nada a ver com a idade, mas com o momento da TV, dos programas de humor, da aceitação do público. Palavrão, piada apimentada não são mais tão chocantes, as pessoas gostam.”

Essa visão de que a nova fase de SS seria uma adaptação ao humor mais chulo que a TV importou da comédia stand-up é compartilhada por outros funcionários do SBT. “O Silvio Santos acompanha a onda, a modernidade. Não posso falar ‘Pô, Silvio, você está pegando pesado’ porque isso é uma coisa tão normal hoje, é moda”, diz Ailton Lima, o Liminha, 47, assistente de palco do “patrão” há mais de 20 anos.

Crédito compensa “escorregões”

Nem tudo tem sido sorrisos na nova fase: SS, que sempre lidou bem com os incontáveis humoristas que o imitam, resolveu, em maio, processar a trupe do programa Pânico, da Band, impedindo-a de imitá-lo e de se aproximar dele. Lívia Andrade diz que a atitude teve lógica comercial. “Tudo tem limite. É burrice dar audiência a outra emissora que está no ar na mesma hora do seu programa.”

O fato é que nem as polêmicas nem as atitudes mais grosseiras da nova fase parecem atingir a imagem de SS. Para Tas, isso se explica pelo extenso crédito acumulado pelo apresentador em suas décadas de TV, que compensam “esses escorregões”:

“Ele sempre fez esse entretenimento da família, do domingo, despretensioso. É como diz a música dele, ‘do mundo não se leva nada/ vamos sorrir e cantar’. Ele está vivendo isso plenamente.”

[Marco Aurélio Canônico, da Folha de S.Paulo]

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Mestre do stand-up, Silvio ri de si mesmo atrás de ibope

Quanto vale o show? De meio século? Difícil dizer. A longevidade do midas da TV brasileira está diretamente ligada a sua capacidade de reinvenção. Silvio Santos é o mesmo de sempre e, ao mesmo tempo, não é mais.

O cara que mostrou para a TV a importância da programação de domingo é narciso da própria imagem na tela. Silvio, que já comandou horas de programa em um único dia, ainda quer reinar absoluto. É um dos líderes de audiência do seu SBT, que já foi o vice-líder com mais folga em outros tempos. Homem de vendas, de circo, de rádio, SS foi estrela grande na Globo, pequena para seus anseios empresariais. Dos infantis aos reality shows, passando por programas de auditório, de calouros, de namoro, concursos de miss e games, SS já se lançou em tudo na TV.

O homem que quis ser presidente nunca teve muitos amigos, mas criou uma legião de “colegas” de auditório. De Las Vegas vieram os nada discretos cenários de suas atrações. Das férias nos EUA trouxe os seus mais populares programas, pelos quais não pagava – até os processos por plágio virarem moda por aqui. Quase perdeu a tão imitada voz e criou um companheiro de locução sem rosto, o saudoso Lombardi. Confinou artistas cercados por câmeras quando a TV brasileira ainda sonhava com um zoológico de desconhecidos. Seguiu jogando aviõezinhos de dinheiro enquanto um Boeing levou-lhe embora um banco inteiro.

Um comediante de stand-up nato

Mas a famosa risada sabe renovar ibope quando a piada é ele mesmo. Silvio já beijou Gilberto Gil na boca, afundou em um tanque de água e ficou sem calças em rede nacional. Caiu de um jegue, apertou o peito de uma colega de auditório e perguntou para Carla Perez, com a ignorância ensaiada de sempre, se ela tinha ensino fundamental. SS cantou e esculhambou as pessoas no ar, com democracia total. A suposta senilidade é o chantili desse bolo de provocações que ele sempre despejou na TV.

Silvio não está gagá ou caduco. Está mais livre para dizer o que lhe vem à cabeça de patrão, apresentador e rei da comunicação. Talvez mais vigiado por uma internet que eterniza seus divertidos deslizes, Silvio é um comediante de stand-up nato. Suas “pérolas” recentes são só mais uma volta desse colar que ele criou e que enfeita nosso pescoço de telespectador há anos.

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[Keila Jimenza, colunista da Folha]