Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Uma fuga para debaixo do nariz

No dia 4 de fevereiro de 2013, a polícia capixaba divulgou a notícia da prisão de José Alayr Andreatta, réu condenado em todas as instâncias judiciais como mandante do assassinato da jornalista Maria Nilce dos Santos Magalhães, ocorrido em 5 de julho de 1989. As surpresas dessa prosaica captura foram muitas. Afinal, Andreatta estava foragido desde julho do ano passado e – muito longe de se esconder em alguma caverna no Cazaquistão – curtia uma espécie de aposentadoria em Jardim da Penha, bairro praiano, considerado nobre na cidade de Vitória.

A reportagem anunciando a prisão de José Alayr Andreatta, veiculada na segunda edição do telejornal da Rede Gazeta, afiliada da Globo no Espírito Santo, adotou um ar curiosamente respeitoso para com o foragido da justiça. Mesmo tom distante e asséptico, é bom dizer, adotado de maneira geral pela mídia capixaba em relação ao caso Maria Nilce ao longo do tempo. O repórter tratou Andreatta como “empresário” e disse que a prisão fora “por acaso”. Afirmação que passa subjetivamente – sem intenção talvez – a ideia de que o empresário fora preso “por engano”. A frase foi a seguinte:

“O empresário José Andreatta foi preso por acaso. Ele saía de um supermercado no bairro Jardim da Penha, em Vitória, quando foi reconhecido pelo delegado Danilo Bahiense.”

Nem é preciso ler nas entrelinhas que, apesar de foragido, Andreatta não era necessariamente um perigoso bandido procurado, tanto que há meses morava despreocupado num bairro bacana e superpopuloso. Na questão da captura, o trabalho da polícia tem todo o mérito, mas o “esconderijo” do meliante surgiu através de uma denúncia anônima. Logo em seguida o repórter fornece um resumo do caso, mas bota resumido nisso, com o seguinte arremate:

“O empresário José Andreatta foi apontado como mandante do assassinato, foi a júri popular em 2006 e condenado a 13 anos de prisão. O empresário recorreu da sentença em liberdade, mas teve todos os recursos negados. Não havendo mais possibilidade de recorrer, a justiça o mandou prender.”

“Nada contra mim”

Estou ficando maluco ou essa frase dá a entender que o homem foi preso por uma espécie de implicância da justiça? Ora, ainda em 1989 a Polícia Federal apurou que Andreatta fretara o voo que dera fuga aos pistoleiros que mataram Maria Nilce e reuniu inúmeras outras provas de que o mesmo participara ativamente da articulação do crime, enquadrando-o como mandante. Acontece que, com o chamado “amplo direito de defesa” – entenda-se, mais de vinte anos de recursos e apelações –, o criminoso não havia sequer cumprido um dia na prisão. Somente em 2006 (!) José Alayr Andreatta foi julgado e condenado a 13 anos de cadeia. A reportagem prossegue dizendo que o mandato de prisão foi expedido em julho de 2012 e que “o empresário, na época, não foi encontrado”.

Pois bem, foi se esconder debaixo do nariz da sociedade capixaba: entenda-se, o cotidiano nada clandestino dos botecos e supermercados de Jardim da Penha. Era mais um entre os inúmeros “tiozinhos gente boa” que frequentam o Pezão e o Bar dos Coroas. Na quarta-feira (6/2), um conhecido meu, dono de um bar no Bairro República, disse que tomou um susto quando viu a notícia. Reconheceu Andreatta como frequentador regular de seu estabelecimento, inclusive na companhia de policiais.

Outra coisa curiosa são os comentários do delegado durante a reportagem porque – sei-lá-por-que – deram a entender que o Andreatta seria um coitado, vivendo em um apartamento minúsculo e dependendo da ajuda financeira de amigos. Será que era então para ter pena dele? O pior é que ninguém deu conta de explicar quem eram esses tais que ajudaram o empresário em sua doce clandestinidade pública. E, quinto parágrafo: quando foi que acobertar foragido da justiça deixou de ser crime? Para colocar a cereja no bolo, o repórter abre o microfone para que o “empresário”, após tudo descrito aqui, tenha nova oportunidade de balbuciar sua inocência no telejornal de maior audiência do Espírito Santo.

“Não tinha motivo nenhum pra matar. Dentro do processo não tem uma prova, não tem nada contra mim. Eu nunca tive… Não fui condenado a nada. Por que ia matar essa mulher?”

Conivente e condescendente

O homem parecia desorientado, o que é natural quando a casa cai. Enquanto isso, o repórter explicava que “para a justiça José Andreatta mandou matar Maria Nilce por vingança”. Vem então o delegado Danilo Bahiense que, aliás, merece todo nosso respeito e admiração pela prisão deste assassino, reproduzir involuntariamente as velhas lorotas ditas por Andreatta no estilo do crime organizado que tem a notória prática de transformar a vítima em réu para justificar covardias e atrocidades.

“Ele disse que a jornalista extorquia alguns empresários e estava querendo extorqui-lo também e ele não aceitou. E ela acabou divulgando de que ele teria se casado com um travesti naquela ocasião. Segundo consta esta teria sido a motivação.”

Neste momento está entendido o crime, certo? Defesa da honra, só para justificar o último argumento porque os anteriores são mentiras cabeludas, mas nada disso foi explicado ao público; foi, isso sim, veiculado impunemente, torno a dizer, no telejornal de maior audiência do Espírito Santo.

Em suma, todo o episódio dessa reportagem absurdamente desrespeitosa para com a memória de uma pessoa assassinada a sangue frio num caso que chocou o país é apenas a prova de que temer, respeitar, dar ouvido e até razão à “alta bandidagem” é ainda algo bastante trivial na sociedade capixaba. A culpa não é do repórter, nem é dos entrevistados. A criminalização de Maria Nilce, e de muitas outras vítimas de casos escabrosos, começa lá atrás e tem a ver com a corrupção de muita gente respeitada, temida e considerada “importante” no Espírito Santo. E a grande mídia – por pressão, influência e sobrevivência – com estes sempre foi conivente e condescendente.

“Peixe pequeno”

José Alayr Andreatta foi julgado e considerado culpado e deve cumprir sua dívida com a sociedade. Porém, é bom lembrar que as investigações da polícia federal o consideraram um “peixe pequeno” e que havia indícios do envolvimento de gente bem acima dele na hierarquia do “crime organizado” no Espírito Santo. A promotoria da época lamentou o fato de não ter sido possível chegar aos maiores financiadores do crime escabroso que vitimou Maria Nilce. Somente com muito custo conseguiram prenderam alguns dos operativos, os homens de campo e, ainda assim, só agora, quase vinte e quatro anos depois, um deles foi parar na cadeia. Agora, nos resta ainda saber se o “empresário” vai ficar mesmo por lá…

Eis o link da reportagem da TV Gazeta aqui comentada, para que todos possam julgar a partir de sua própria percepção: http://g1.globo.com/videos/espirito-santo/estv-2edicao/t/edicoes/v/empresario-andre-andreatta-foi-preso-hoje-em-vitoria-no-es/2386373/

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[Juca Magalhães é escritor, Vitória, ES]