Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“A TV é a expressão desse politicamente correto mal entendido”

Pedro Arantes é um dos três vencedores do prêmio Pitching da TV Câmara por seu documentário O riso dos outros, que trata do humorismo feito no Brasil na atualidade, com destaque para a stand up comedy. Premiado por um dos melhores audiovisuais entre 70 propostas concorrentes, o realizador considera que a repercussão do seu filme tem sido bastante positiva, especialmente considerando-se que foi feito com poucos recursos.

Diretor de séries de humor como As Olívias, do canal Multishow, e Vida de Estagiário, da TV Brasil, Pedro Arantes diz ver na TV brasileira a expressão do que seria o “politicamente correto mal entendido”: o moralismo conservador. Discutindo os limites entre a comédia e a ofensa, o filme O riso dos outros entrevista humoristas, cartunistas, militantes, parlamentares e especialistas, apresentando várias perspectivas sobre o tema.

Formado pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), o documentarista defende que a linguagem veicula estereótipos e que os humoristas não estão isentos de tomarem posições ideológicas, ainda que não sejam conscientes disso. Arantes afirma crer, porém, que o humor pode servir para quebrar estereótipos e que excessos devem ser regulados de forma democrática.

“O filme consegue ampliar o debate”

Por que fazer um documentário sobre humor? O que o motivou a trabalhar com essa temática específica?

Pedro Arantes – Já era uma área na qual eu trabalhava. Meu trabalho de conclusão de curso na faculdade foi um filme de comédia. Eu e o pessoal daqui da produtora sempre gostamos muito de trabalhar com a linguagem humorística. É o tipo de linguagem que a gente gosta de trabalhar e que consegue comunicar muita coisa. É muito popular e as pessoas gostam. Quando começou toda essa discussão do “humor politicamente incorreto”, foi uma coisa que eu fiquei pensando sobre e a gente discutia bastante. A gente vê bastante humor brasileiro e gringo também. A gente tem bastante referência. Então, era uma discussão que a gente já estava um pouco imerso nela.

Você considera O Riso dos outrosum sucesso?

P.A. – Dentro das minhas expectativas, sim. A medida do sucesso é meio relativa, porque depende de onde você queria chegar e de onde você partiu. Acho que para um filme feito com um edital pequeno, da TV Câmara, falando de um tema que é meio árido, praticamente só com gente falando, de discussão, eu considero que a repercussão que ele tem tido é um sucesso, sim. Grande parte desse sucesso tem a ver com a relevância do tema. Já era um tema quente. Não fui eu quem inventou essa discussão. Ela já tava pautada. Tem bastante disso: de uma atualidade da coisa. E, por outro lado, eu acho que o filme consegue ampliar um pouco o debate.

“Existe um limite que todos compartilhamos”

As piadas contribuem para reforçar estereótipos e exercer uma violência simbólica?

P.A. – A disputa político-ideológica se dá essencialmente na linguagem. A linguagem é a realização das coisas que a sociedade pensa, acredita e pratica. Então, se você diz: a piada serve pra reforçar o estereótipo… Na verdade, a piada, a linguagem, o que se diz, é a própria manifestação do estereótipo, entende? É uma forma de o estereótipo se manifestar. Outra forma é você sair batendo nas pessoas. Outra forma são discursos de ódio. Outra forma é o parlamentar passar legislações que restringem direitos. Se você entende a linguagem como manifestação real das coisas, então uma piada nunca vai ser “só uma piada”, entende? Porque toda linguagem é também um posicionamento político. Toda comunicação é a realização de uma visão de mundo. E essa visão, seja no humor, seja num discurso de ódio, ela está construindo essa visão de mundo, entendeu? Nesse sentido, eu não acredito que possa haver nada imparcial, pois se toda linguagem é a colocação de uma visão, toda linguagem é parcial. Por outro lado, o discurso humorístico pode servir para quebrar com esses estereótipos.

Você acha que o humor deve ter limites?

P.A. – Quando a gente fala limites, parece tudo sempre meio pejorativo. Até porque a gente vive num mundo que tem uma coisa um pouco “a liberdade é um grande valor!”, “a vida sem limites!”. A sociedade meio que prega isso. Por exemplo, publicidade de carro: “Não tenho um limite. Comprei um carro, sou livre”, né? Um pouco essa ideia dessa liberdade. Então, quando a gente fala de limites, sempre tem uma conotação meio pejorativa. “Ah, tá querendo botar limites na minha liberdade!” Eu acho que a vida em sociedade é um pouco estabelecer limites para tudo. Existe um limite que todos nós concordamos ou compartilhamos: o de que não se pode matar alguém. É um limite socialmente acordado e legalmente colocado. Tem consequências claras para o caso de esse limite ser ultrapassado. Um pouco de viver em sociedade é isso: negociar sempre esses limites. Então, sim, esses limites vão ser acordados e estabelecidos idealmente pela maioria.

“O problema é quando você reforça o estereótipo”

Você defende que esses limites têm que ser expressos em leis?

P.A. – Por que se precisa de uma lei dizendo que racismo é crime? Porque a sociedade é racista, e precisou o legislador ir lá e escrever isso na lei e punir esse comportamento para talvez mudar isso. A lei é um acordo da maioria da sociedade de que deve haver limites para tais e tais coisas. Acho que a lei ajuda um pouco a transformar essa realidade.

Você vê uma diferença entre o humor feito no teatro, em que a pessoa sai de casa e paga um ingresso para assistir, e o que é transmitido pela televisão aberta, que é uma concessão pública e que chega direto à casa das pessoas?

P.A. – Tem diferença, sim. No Brasil, parece que a plateia que pagou o show é obrigada a rir, e não o comediante que é obrigado a fazer a plateia rir. Tu já vai com aquela disposição. Essa discussão é interessante porque existe muito mais diferença moral, mas eu não vejo tanto uma diferença política. Por exemplo, na TV você não pode falar palavrão porque moralmente não é muito aceito. No teatro, você pode falar palavrão, que aí a plateia acha engraçadíssimo. Na TV, você não pode ofender um anunciante, o que no teatro é meio liberado. Existe muito posicionamento moral na televisão e pouco posicionamento político.

Quando a gente começou a fazer o filme, muitos comediantes colocavam no mesmo saco fazer piada com negro, fazer piada com gay, fazer piada com bancário ou falar palavrão, como se tudo isso fosse: “Ah, a patrulha do politicamente correto que não deixa fazer piada com nada!” E acho que o filme tenta colocar que o ponto não é bem esse. O bancário nunca foi uma categoria explicitamente oprimida e perseguida. O palavrão não é um problema. Todo mundo fala palavrão, o palavrão faz parte da vida e da linguagem. O problema é quando você está reforçando o estereótipo desses grupos explicitamente desfavorecidos. Acho que a TV é um pouco a expressão desse politicamente correto mal entendido: não pode falar palavrão, não pode dizer piada que ofenda o anunciante, não pode ofender a moral e os bons costumes, mas tudo bem fazer piada de bicha. Porque fazer piada de bicha não ofende a moral e os bons costumes. Fazer piada de mulher sendo assediada ou estuprada no metrô não ofende a moral e os bons costumes.

“Você é responsável pelo que você fala em qualquer lugar”

Você acha que deveria haver uma diferença no comportamento do humorista da TV e do teatro?

P.A. – Eu acho que deveria haver uma diferença nesse posicionamento, porque aquilo que você fala em privado é diferente do que você fala em público. As esferas alteram um pouco seu entendimento. Eu estou num mesa de bar com amigos que me conhecem, sabem quem eu sou, de repente eu posso fazer uma ironia que pode ser ironicamente reforçando o estereótipo e todo mundo saber que eu não compartilho com aquilo, que a força da própria ironia é afirmar uma coisa quando ela quer afirmar o seu contrário. Isso é uma coisa para fazer na mesa de bar. O uso da ironia, por exemplo, que é uma ferramenta maravilhosa do humor, para públicos amplos é cada vez mais complicado, porque o entendimento é um entendimento complexo. Ele depende de ter compartilhado uma série de códigos que permitam que você entenda aquilo corretamente. Então, sim. Acho que quanto mais aberto o escopo, mais você vai tendo que ir para uma linguagem que seja, digamos, mais universal. No sentido que trabalhe com códigos que você acredita que a maioria das pessoas domina. E, sim, os humoristas fazem isso, eles sabem disso. Os caras são comunicadores e não são idiotas. Eles sabem que determinadas piadas vão funcionar no teatro porque eles já estão sentindo o público e eles sabem mais ou menos o público que vai. Se eles fizerem na TV, talvez eles não sejam bem compreendidos porque um público mais amplo não vai dominar aquele repertório que eles estão ativando ao fazer aquela piada.

Acho que você é igualmente responsável pelo que você fala em qualquer lugar. O que você fala é o que você é, o que você acredita, enfim, o que você faz. Uma coisa é o cara estar no teatro e dizer: “Beleza, eu aguento essa responsabilidade e vou falar mesmo que o negócio caia pra cima de mim.” Outra coisa é a emissora, que é uma concessão pública, e teoricamente, ao conquistar a concessão, aceita uma série de responsabilidades que, inclusive, estão previstas em lei.

“São mudanças de mentalidade que demoram pra acontecer”

O que você acha do humor engajado? Pode se pensar em termos de um “humor político” e de um “humor apolítico”?

P.A. – Não. Não pode. Eu não cobro que se faça um humor engajado… Tem que ser bom! Tem que ser engraçado! Se o lance é fazer piada, tem que conseguir. Mas eu não acho que exista um humor político e um humor apolítico. Essa distinção que hoje em dia se faz, cada vez mais, é um empobrecimento de debate que é muito complicado. As pessoas falam: “ah, eu não mexo com política”, “eu não quero saber de política”; porque política virou um pouco redução à coisa institucional, à política partidária, que é vista com uma visão bem moralista como um negócio sujo. Estar na vida, se relacionar em sociedade, é um ato político. Você decide fazer as coisas na sua vida pelo que você acredita, pelo que você quer. As pessoas todas decidindo juntas vão criando o que é a sociedade naquele período histórico. Então, não dá para falar de um humor apolítico. Você agir no mundo é você colocar um posicionamento. E você se colocar é uma atitude política. Você pode fazer isso de uma maneira consciente ou inconsciente. Pode estar naturalizando suas atitudes e estar inconscientemente fazendo as coisas ou você pode saber de onde vem e para onde vai. De onde vem essa piada e ao que ela leva, o que ela reforça, o que ela representa, o que ela quebra, para onde ela aponta. É o sujeito tendo consciência histórica. Quando você começa a pensar nessas questões, você começa a fazer escolhas: “isso eu quero falar, isso eu não quero, porque isso eu acho legal dizer e isso eu não acho legal”. Então você está agindo politicamente de maneira consciente, enquanto você diz que está agindo apoliticamente você só está agindo politicamente de maneira inconsciente. Então, você me pergunta: você tem preferência por arte engajada? Não, mas tenho preferência pela arte que parte de premissas políticas nas quais eu acredito. O realismo socialista eu acho uma arte meio ruim, uma arte meio feita de cima para baixo. Acho que esse tipo de manifestação politicamente engajada tinha muito pouco valor como arte e muito mais valor como política. Já o Laerte ou o Bill Hicks são bons no que eles se propõem, são bons em fazer um bom humor.

O humor pode ser transformador?

P.A. – Acho que sim. Fazer humor, ainda mais fazer humor como profissão, é agir no mundo e agir no mundo é transformador. Não acho que um comediante vai subir no palco e quando ele descer as pessoas vão sair de lá e fazer uma passeata, mas o cara pode subir no palco e as pessoas vão pra casa um pouco pensando naquilo ou rindo daquilo, ridicularizando os poderosos, quem oprime, e não quem é oprimido. E isso vai um pouco mudando a cabeça das pessoas. E isso é transformador. De repente ninguém acha mais engraçado fazer a piada da “bichinha”, entendeu? Quer dizer que ninguém mais acha engraçado rir dos homossexuais porque não é defeito ser homossexual. Foi transformador, entendeu? São mudanças de mentalidade, que demoram muito tempo pra acontecer.

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[Bruno Marinoni e Mônica Mourão, do Observatório do Direito à Comunicação]