Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O debate sem graça dos amigos do Genoino

Quando administravam o Parque do Xingu, nos anos 1960, os irmãos Vilas Boas passavam várias horas do dia entocados numa casamata a falar pelo rádio, o único meio de que dispunham para contatos com o mundo dito civilizado. As chuvas nas rotas do rádio tornavam a comunicação impraticável: as vozes dos interlocutores eram abafadas por uma chiadeira infernal. “Muita interferência, muita interferência, câmbio, desligo. Muita interferência, muita interferência…” era o que mais se ouvia de quem tentava em vão se comunicar.

Do lado de fora, sentados ou deitados no chão, ficavam vários índios a se deleitar com as conversas radiofônicas cujo significado mal conseguiam captar. Um belo dia Orlando Vilas Boas ouviu o ronco de um avião que sobrevoava o parque. Era – ele sabia – um antropólogo canadense que faria uma longa visita ao parque. Chamou um dos índios, bastante esperto, e orientou: “Vai descer do avião um gringo; vai até a pista de pouso, recebe o gringo, ajuda a carregar as malas e o leve lá para aquela oca assim e assado. Depois, volta aqui.” O índio saiu rápido como um corisco. Meia hora depois apresentou-se a Orlando que lhe perguntou: “O gringo chegou?” “Chegou!”, respondeu o índio. “Está hospedado na oca?” “Está!” “Conversou com ele?” “Conversei.” “E o que ele disse?” “Não entendi nada. Muita interferência.”

Essa história, entre as muitas outras que Orlando Vilas Boas nos deixou em sua literatura sobre a cultura indígena, nos mostra que o senso de humor é uma espécie de dom divino ou uma espécie de sal da alma. Todos nós, primitivos ou civilizados, fomos contemplados por ele, graças a Deus. Se o planeta fosse um avião em pleno voo e o humor estivesse proibido dentro dele não tenham dúvidas de que eu pediria para descer na próxima escala. A vida sem humor deve ser um porre!

O sobrenome é que conta

Digo isso porque volta e meia a web se enche de artigos e comentários de pessoas que parecem desejar o fim do humor e que todos nos transformemos em seres taciturnos, desprovidos de alegria, um tanto parecidos com a imagem que nos passa o José Genoíno em suas aparições pela televisão, especialmente depois de ser envolvido nos episódios do mensalão. Aproveitam um ou outro excesso do humor exibido pela televisão e esgrimem argumentos em favor da ética e em favor do controle do humor. A depender dessas pessoas, programas como o Custe o que Custar (CQC), da TV Bandeirantes, seria banido da face da terra e seus realizadores linchados em praça pública. É muita indignação para pouco excesso.

O último episódio que despertou a ira de muita gente contra o CQC envolveu justamente o deputado José Genoíno, que sempre se recusou a falar ao programa. Desta vez, o CQC pôs um menino, incógnito, para ouvir o deputado em seu nome. E o deputado caiu na “pegadinha” – falou ao CQC através do ator-mirim sem saber que o fazia. O quadro não foi ético, nem engraçado. A gravidade nas crianças, ainda mais quando induzida por adultos, só é capaz de constranger quem a vê.

O interessante disso tudo é que a “pegadinha” só despertou tanta ira por ter sido aplicada contra o famoso José Genoíno, um dos condenados pelo mensalão e que, ainda assim, assumiu o cargo de deputado federal por sua condição de suplente. Faz muitos anos que diferentes emissoras do Brasil exploram o filão das “pegadinhas” expondo ao ridículo uma verdadeira legião de pessoas simples do povo. Nunca se viu o despertar de alguma indignação na web contra o que é proporcionado ao José da Silva. Já em relação ao José Genoíno… Neste país, o sobrenome é que conta.

Debate sem graça

Estamos diante da insensatez ou de pessoas que querem matar o galo porque numa das madrugadas ele cantou desafinado, embora nada indique que ele continuará a cantar desafinado nas madrugadas seguintes. Temos de ser mais tolerantes com os excessos do humor desde que estes não causem danos morais irreversíveis a pessoas e a instituições. Falta-nos perceber, aliás, o que o senso popular tem espalhado por aí, com boa dose de ironia e humor: ficaríamos ricos se comprássemos pessoas como José Genoíno e Galvão Bueno pelo que valem e conseguíssemos vendê-las pelo que acham que valem. A arrogância é o inimigo número um da comunicação.

Há também argumentos que procuram desmerecer o CQC negando que se trate de programa também jornalístico. E o assunto evoluiu para uma verdadeira tertúlia na web, como se fosse preponderante para a sociedade brasileira definir se o CQC é um programa jornalístico de humor ou apenas um programa de humor sem nada de jornalístico. A preocupação, contudo, é capciosa. Ao negarmos o viés jornalístico do CQC aumentaremos as possibilidades de censurar e controlar as inconveniências do próprio humor.

Jornalistas ou atores, pouco importa, do CQC estão proibidos de entrar no Senado. Frequentam a Câmara, mas não têm acesso ao Senado, como se este, que ainda há pouco tempo elegeu Renan Calheiros como seu presidente, fosse um santuário inexpugnável. A dimensão jornalística do CQC é, contudo, inegável, quer queiram ou não os amigos de Genoíno. Através do CQC soubemos, por exemplo, que um número expressivo de apartamentos funcionais, reservados a parlamentares, em Brasília, são ocupados irregularmente há anos; através do CQC soubemos que magnatas ocupam irregularmente também as margens do Lago de Paranoá, em Brasília; soubemos que doações recebidas por prefeituras da Grande São Paulo são muitas vezes desviadas em beneficio de funcionários; sabemos que os parlamentares brasileiros sabem muito pouco, quase nada, dos assuntos que teriam por obrigação dominar como representantes do povo; conhecemos os desmandos e a inépcia de inúmeras prefeituras que deixam abandonadas comunidades inteiras por falta de algumas obras essenciais, como ponte, asfalto, redes de esgoto e tudo o mais.

Amigos do Genoíno tentam despertar um debate que não tem nenhuma graça.

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Dirceu Martins Pio é jornalista, consultor em comunicação corporativa e autor do livro Caminhos Seguros para o Empreendedor, escrito em parceria com Pedro Cascaes Filho