Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A comentarista que assassinou a notícia

Tornou-se um formato comum na televisão brasileira, talvez nos rastros da norte-americana, o uso de comentário, obviamente opinativo, dado pelo apresentador do telejornal após a transmissão de alguma notícia. Boris Casoy desempenha esse papel há muitos anos e, além dele, uma série de jornalistas ganha reconhecimento devido às suas opiniões. No entanto, cabe questionar: quando o comentário contribui para a melhor compreensão do fato noticiado e quando o destrói, soterrando-o com palpites e julgamentos pessoais?

Mariana Gomes, 24 anos, foi a segunda colocada no processo seletivo da Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense com projeto de dissertação intitulado “My pussy é poder”. Aborda a representação feminina através do funk no Rio de Janeiro, além de questões como identidade, feminismo e indústria cultural. Mariana concedeu entrevista ao Jornal do SBT em abril deste ano, durante a qual tentou explicar um pouco sobre de que tratava sua pesquisa. Apesar do leve ar de fait divers que povoou a breve matéria, a estudante se mostrou séria em sua fala e o repórter lhe deu a oportunidade de mostrar seu ponto de vista: “Onde muitos viam apenas uma mulher como objeto, Mariana viu um objeto de estudo que precisa ser aprofundado”.

Em seguida, a câmera retorna para a bancada do telejornal e a apresentadora Rachel Sheherazade toma a palavra para dizer que o funk carioca “fere seus ouvidos de morte” e representa o lixo das manifestações culturais. A jornalista segue criticando o projeto de pesquisa e sua autora e erra nas terminologias ao falar que Mariana faz uma tese de mestrado (em mestrado se produz é dissertação, já que tese é fruto de doutorado). Sheherazade ainda encerra perguntando: “Será que o assunto tem profundidade?”

Seria a polêmica intencional?

Tanto o projeto de Mariana Gomes quanto os comentários de Rachel Sheherazade não tardaram a repercutir nas redes sociais. Enquanto alguns concordavam com a jornalista, muitos atentavam para o fato de Mariana ter se sentido humilhada publicamente. A estudante, inclusive, publicou uma carta online, dirigida a Rachel Sheherazade e à equipe do SBT, na qual agradece a visibilidade, mas diz que colocaram sua fala em um contexto equivocado e que, ao comentário da apresentadora, faltou conhecimento sobre o tema. A opinião da jornalista não apenas prejudicou a imagem de Mariana, como também a ofendeu.

A relação entre jornalistas e fontes sempre envolveu questões delicadas. Ao mesmo tempo em que o jornalista precisa ser crítico e desconfiado sobre o que ouve, também existe um acordo silencioso de respeito mútuo – principalmente quando alguém lhe concede, despreocupadamente, o direito a uma entrevista. O que aconteceu com Mariana, ao ter suas palavras usadas contra ela para corroborar com o ponto de vista da comentarista, é uma complicação recorrente no jornalismo. No caso específico de Sheherazade, que já está famosa nas redes sociais da internet por suas opiniões radicais, é ainda possível levantar outra questão importante: seria a polêmica intencional? A jornalista se defendeu dizendo que foi contratada para apresentar suas opiniões, independentemente de quais sejam. De novo: a polêmica e a visibilidade são mais importantes do que a confiança que a fonte deposita sobre o jornalista? Outras questões ainda cabem: por que a opinião pessoal da jornalista é relevante? Por que o gosto musical da jornalista importa?

Quem fala o que quer…

Na internet, uma das frases repetidas sobre o episódio dizia que “alguns jornalistas têm o péssimo hábito de falar sobre qualquer coisa, mesmo sendo bem informados sobre quase nada”. Infelizmente, é o que se vê em vários comentaristas tanto de televisão quanto de rádio e veículos impressos. Há reportagens e matérias que pedem por um interlocutor que as interprete, papel que Carlos Alberto Sardenberg costuma desempenhar quando o assunto é economia e que Arnaldo Jabor desempenha para praticamente qualquer tema. Às vezes são comentários esclarecedores e que ajudam o público a melhor compreender os fatos. Noutras vezes, os comentaristas parecem atuar como assassinos da notícia, seja desmoralizando fontes, refutando informações, repetindo preconceitos e julgamentos pessoais. No entanto, é preciso levar em conta que uma opinião bem fundamentada é claramente diferente de um palpite emocional.

O papel do comentarista de notícias é nobre e necessário. Tem a ver diretamente com o papel do jornalismo, que é o de informar a todo tipo de indivíduo, mas também de esclarecer. Ao carregar consigo a etiqueta clara da opinião – sem as amarras da imparcialidade que as hard news demandam –, os comentários possuem o poder de libertar, de levantar o véu que porventura disfarça a linha editorial da empresa jornalística, ilustrar e interpretar acontecimentos complexos. No entanto, como em qualquer outra área do jornalismo, há critérios que precisam ser levados em consideração, tais como relevância, conteúdo informativo e verossimilhança.

O fato é que há bons comentaristas assim como há os infelizes em suas escolhas de palavras. Mas o público também possui capacidade crítica. Mariana Gomes pode até ter sofrido pelas palavras levianas de Sheherazade, mas a voz ensurdecedora dos internautas devolveu as críticas à jornalista que aprendeu uma das lições mais primordiais: quem fala o que quer…

******

Sílvia Mendes é jornalista e mestranda em Jornalismo (Florianópolis, SC)