Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O vício da notícia

/o:p>

Talvez seja culpa de seu ótimo desempenho num antigo filme de Woody Allen, “A Rosa Púrpura do Cairo”. O fato é que, por mim, Jeff Daniels terá sempre o papel do perfeito panaca americano – passivo, grandalhão, branquelo e balofo.

Ele surge desse jeito nas cenas iniciais do seriado “Newsroom” –meu mais recente vício televisivo. Jeff Daniels é o âncora Will McAvoy, astro de um noticiário das dez que não fede nem cheira.

McAvoy está participando de um debate numa universidade americana. Enquanto ele fica quieto, olhando de um lado para o outro, a discussão pega fogo.

Contrapõem-se os lados clássicos da luta ideológica norte-americana: uma direita fundamentalista, triunfante e raivosa, contra um centro-esquerda democrata acuado e sem originalidade.

O encontro já está chegando ao fim quando o nosso picolé de chuchu, por razões que só serão explicadas mais tarde, tem uma iluminação e se engaja num discurso memorável.

Fatos e mais fatos, números e mais números são expostos com uma lógica impiedosa, provando por A mais B que os Estados Unidos não são nada dessa maravilha que os americanos dizem ser.

Como acontecerá em muitos outros momentos do seriado, o acúmulo de evidências empíricas se acompanha de um crescendo emocional, e a música, de um modo que não poderia ser mais americano, conquista a adesão até mesmo do espectador mais cético.

Confiaremos plenamente em Will McAvoy a partir de agora, e ele próprio renasce como jornalista. Seu noticiário conhecerá uma reviravolta fabulosa, graças à aparição de uma nova produtora, vivida pela britânica Emily Mortimer.

Nada mais de engolir explicações oficiais furadas. Nada mais de fofocas idiotas. Nada mais de ouvir as mentiras conservadoras em silêncio. McAvoy ganha o poder de jogar sobre a mesa, como um cadáver na sala do júri, os fatos decisivos, que deixam os assessores e os políticos sem resposta.

Para qualquer pessoa interessada em notícias, o seriado é irresistível. Sua segunda temporada estreia no Brasil dia 15 de julho, pela HBO; o pacote com os DVDs da primeira temporada já está nas lojas.

Como em toda minissérie que se preza, as personagens ficam mais complexas a cada capítulo. A aparência de bonachão escondia, no caso de Jeff Daniels, um tipo dos mais antipáticos, incapaz até de saber o nome próprio dos subordinados.

Logo veremos que o mau humor do âncora tem origem numa grave decepção sentimental. Mas não! Havia outras causas… E espere, sua violência contra os entrevistados está saindo fora do controle. Mas o que é isso? O sujeito tem um coração de ouro.

Viciei-me na novela, como se vê. Multiplique esses quiproquós psicológicos pelos vários personagens da equipe que produz o noticiário. São, aliás, tipos deliciosos para quem conhece um pouco da vida interna do jornalismo.

Há a loirinha absolutamente atrapalhada, pronta a cometer prodígios de ignorância –só que, apesar da aparente burrice, ela tem o jornalismo no sangue. Há a acadêmica de óculos, gostosíssima, fluente em dez línguas –mas totalmente surda para as regras mais elementares da profissão. Naturalmente, muita tensão sexual se concentra naquele convívio em ambiente fechado.

Cada encontro entre os personagens ganha as faíscas rapidíssimas dos diálogos de Aaron Sorkin (autor de “West Wing”).

Apesar da suposta neutralidade de McAvoy no debate do primeiro capítulo, sua atuação é dura no combate ao conservadorismo americano. “Ah, como seria possível isso numa grande emissora privada de TV hoje em dia?”

Pois é. O tapete do âncora e de sua equipe está sendo puxado o tempo inteiro. Mas o jogo da emissora exige inteligência de detetive para ser descoberto.

O melhor, entretanto, está naquilo que toda produção americana não se cansa de fazer. Jornalistas ou pistoleiros, astronautas ou detetives, os personagens são sempre excelentes em sua atividade, e podem gabar-se dos êxitos mais implausíveis.

A ideia de que se vive pela vocação, de que ou se é um profissional “outstanding” ou não se é nada, sobrevive a despeito de todas as falhas humanas de cada personagem. Que incluem, por exemplo, estar chapado de maconha no dia de uma revelação histórica.

Cada capítulo, aliás, aborda capítulos recentíssimos da política americana. Espero ardentemente pelos próximos.