Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Cobrança de conteúdo divide setor de TV

Com o apagão da TV analógica previsto para ser deflagrado em 2015, será iniciada uma nova fase de negócios entre as emissoras de TV aberta, que geram conteúdo, e as operadoras de TV por assinatura, que fazem a distribuição dessa programação dentro de sua grade. No sistema atual, que é analógico, as operadoras são obrigadas a distribuir o conteúdo das emissoras de TV aberta, que não cobram por isso. Na legislação, o compromisso é conhecido como “must carry”, ou “dever de carregar” o sinal. Mas, o que começou como uma obrigação, acabou se tornando fonte de receita e audiência para as operadoras de TV paga. Mas, com a TV digital o cenário muda.

“Quase 70% dos assinantes de TV por assinatura só contrataram o serviço para ter um sinal melhor da TV aberta”, afirmou ao Valor, Luis Roberto Antonik, diretor-geral da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão. Para a Abert, deve haver a cobrança, no entanto, a negociação é feita pelas emissoras, tendo como base a resolução 581 da Anatel.

A Lei Geral de Telecomunicações (LGT) prevê que os radiodifusores poderão cobrar dos operadores de TV que queiram distribuir seus canais abertos com o novo padrão tecnológico. A explicação é que a gratuidade que existia na antiga Lei do Cabo, na década de 90, não se aplica mais ao sistema digital. Na época, quando a TV por assinatura começou a se propagar no Brasil, os radiodifusores tiveram medo de perder espaço na nova mídia e de não ter poder de barganha para negociar acordos. Por isso, aceitaram o carregamento de seus canais sem exigir contrapartida.

Com o amadurecimento desses setores, a qualidade dos canais abertos e sua aceitação dentro do serviço por assinatura, os radiodifusores ganharam confiança, pois acreditam que seu conteúdo agrega valor e receita ao negócio da TV paga. Por isso, querem uma fatia no bolo digital das operadoras. Não há consenso entre as partes e a disputa começa a criar polêmica.

Na verdade, segundo a LGT, as operadoras de TV por assinatura “podem carregar” os canais digitais da TV aberta, opção conhecida como “may carry”, e a TV aberta pode, ou não, cobrar por isso. Para radiodifusores e reguladores, agora é o setor de TV por assinatura que quer carregar esse conteúdo, que lhe dá audiência e receita, mas não mostra disposição de pagar por isso. Os radiodifusores acreditam que agora têm poder de barganha e começam a se preparar para negociar a cobrança. Não há indícios de que sairá um acordo fácil.

O começo do debate

Por meio de nota, a Net afirmou que “distribui gratuitamente os sinais de canais abertos desde o início da TV a cabo, por entender que esse é um serviço conveniente para seus clientes, que não terão que se incomodar com antenas ou recepção de sinais. Além disso, as emissoras também têm a garantia de que seus sinais serão recebidos com excelente qualidade de imagem e som”. Dessa forma, conclui: “A Net entende que não faz sentido pagar para distribuir conteúdos que são oferecidos gratuitamente ao consumidor em outras plataformas. No caso da TV aberta com tecnologia digital, os sinais são oferecidos gratuitamente no ar e a maioria das TVs vendidas no Brasil já sai de fábrica com conversores capazes de recebê-los. Mesmo assim, muitos clientes continuam utilizando as plataformas de TV paga para receber esses sinais, seja pela conveniência ou por problemas de recepção via antena.”

Olímpio José Franco, presidente da Sociedade Brasileira de Engenharia de Televisão (SET), que representa empresários e profissionais das TVs abertas e por assinatura, é favorável à cobrança de conteúdo no sistema digital. “O conteúdo [de canais abertos] tem valor, então tem que ser remunerado. É um direito das emissoras reivindicarem isso”, disse.

Procurados pelo Valor, a Sky, que vem contestando na Justiça o pagamento de conteúdo de TV aberta em sua grade, os grupos SBT, Bandeirantes, Record e Globo não quiseram comentar o assunto. A Associação Brasileira de Telecomunicações por Assinatura (ABTA), que representa as operadoras, também preferiu manter o silêncio.

O Regulamento do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), Lei 12.485/2011, que substitui o Regulamento do Serviço Especial de Televisão por Assinatura, estendeu a obrigação do cabo de carregar canais das geradoras locais para outros serviços de TV por assinatura, como satélite (direct-to-home, DTH) e microondas (MMDS, sistema que está sendo retirado das emissoras de TV paga para ser usado pela telefonia móvel de quarta geração – 4G). Na prática, ficaram só as tecnologias por cabo e satélite que, juntas, representam 99,8% de participação no mercado de TV paga. O 0,2% restante ainda é MMDS.

Os grandes grupos de radiodifusores, como Globo, SBT, Record e Bandeirantes, por exemplo, investem em produção de conteúdo e dramaturgia, e contratação de direitos desportivos. Criam, assim, programação que interessa ao telespectador, o que lhes dá poder de barganha junto aos radiodifusores, disse o conselheiro da Anatel, Marcelo Bechara. Mas os radiodifusores menores não têm mesma essa mesma força. Pela lei, se não houver acordo, a agência reguladora pode ser chamada para arbitrar a disputa. Até agora, ainda não houve nenhum caso, disse Bechara.

De qualquer modo, não seria fácil julgar um caso desses. “A legislação é extremamente confusa, porque reflete diversos interesses, de pequenas e grandes prestadoras de telecomunicações, bem como de radiodifusores”, disse Bechara. “E quando a lei pretende abraça todos os interesses, se torna complexa.”

Por isso, o conselheiro propõe que a Anatel faça um regulamento de distribuição; haveria uma consulta pública à sociedade e a agência reguladora teria tempo de ouvir o mercado para buscar equilíbrio.

Antonik, da Abert, citou levantamento da National Association of Broadcasters (NAB), segundo o qual, quase 40% dos radiodifusores cedem conteúdo digital para as operadoras de TV por assinatura nos Estados Unidos e cobram por isso. Na Europa, o procedimento é o mesmo, afirmou. As duas organizações não revelaram os valores negociados. No Brasil, o debate ainda está no início, mas fontes ouvidas pelo Valor disseram que os acordos não precisam necessariamente envolver pagamento direto pelo conteúdo, e sim participação em pacotes publicitários ou outros acertos mercadológicos.

***

Trocando em miúdos

O canal analógico é distribuído em tecnologia analógica, UHF ou HF, enquanto o canal digital é o que já está em rede aberta por distribuição digital. A transmissão por satélite (DTH) sempre foi distribuição digital. A lei diferencia analógico e digital como “standard definition” (SDTV), que é a imagem padrão, e “high definition”, que é a imagem de alta definição (HDTV). Segundo o conselheiro Marcelo Bechara, da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), parte do mercado entende o padrão HDTV, já disponível no cabo e satélite, como digital, e o SDTV, analógico. Isso não está totalmente correto, porque ainda tem muito canal analógico no cabo, disse ele, embora na transmissão por satélite faça sentido, porque a tecnologia já nasceu digital. No Brasil, existem 516 geradoras de televisão. A lei diz que a TV paga tem de carregar as geradoras locais de radiodifusão, como os canais da Câmara, do Senado, da Justiça, canal Universitário, TV Brasil etc. Mas, como é impossível tecnicamente para as operadoras de TV por assinatura via satélite carregar o conteúdo de todas essas geradoras, a Anatel deliberou as redes que seriam carregadas – são as que atingem um terço da população brasileira e estão presentes nas cinco regiões geopolíticas do país. Foram destacados, assim, 14 grupos de geradoras de radiodifusão, entre os quais estão Globo, SBT, Bandeirantes, Record, CNT, MTV, Rede Vida e Canção Nova. Se a TV paga já carrega o canal digital do radiodifusor, está dispensada de carregar aquele mesmo canal analógico. Atualmente, a operadora carrega os dois canais porque nem todos os assinantes têm a caixinha de conversão do sistema HDTV. O sinal analógico só pode ser desligado se o acesso em alta definição estiver garantido a todos os canais para todos os assinantes.

******

Ivone Santana, do Valor Econômico