Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Múltiplos equívocos em horário nobre

Como se o papel de Paola de Oliveira em Insensato Coração, de Gilberto Braga, não tivesse deixado sequelas suficientes na nossa memória novelística, constata-se que o autor de Amor à vida fez uma verdadeira reciclagem de atores de Gabriela (Vanessa Giácomo, Fabiana Karla, Bruna Linzmeyer, Anderson Di Rizzi). Walcyr Carrasco acabou formando um elenco inflacionário para um roteiro capenga e de núcleos confusos. Que saudade do núcleo da família Tufão magistralmente guiado pela garra e febre criativa de Amora Mautner na obra novelística – Avenida Brasil – que parou o Brasil em 2012.

Síndrome de Glória Perez

Nas novelas de Glória Perez é de praxe a convocação de um elenco de grande gabarito. Ao longo da trama, mais ou menos resolvida, alguns deles vão caindo no ostracismo. Com Amor à vida não é diferente. A falta de coerência dramatúrgica e cronológica causa, para dizer ao mínimo, estranhamento quando um ator vinha tendo cenas frequentes e, de repente, sem qualquer explicação, tira “férias involuntárias” da trama.
Isso aconteceu com o Dr. Jacques (Júlio Rocha), o ambicioso cirurgião que está disposto a tudo para se tornar o sucessor de Lutero (Ary Fontoura) no hospital San Magno. A personagem Vega (Christiane Tricerri), mulher de Atílio, também foi “esquecida”. Na ocasião do segundo desaparecimento do Atílio (Luis Mello), que já havia se tornado “Gentil”, Vera simplesmente sumiu de cena. Nem um take de ida à polícia ou ao hospital São Magno para tentar obter informações sobre o paradeiro do marido.

A reação inicial bradada em pleno corredor de um hospital, de processar a diretoria do San Magno pelo desaparecimento e o total desinteresse da própria pelo sumiço depois da segunda escapada do Atílio, mostra claramente a falta de coerência no decorrer da trama, nos personagens e no desenvolver da sinopse fixada ante do início das gravações. Na sinopse original, César (Antonio Fagundes) deveria morrer quando obtivesse certeza das falcatruas de Félix (Matheus Solano) nos contratos. Essa possibilidade parece descartada, já que os resultados da auditoria serão divulgados nos capítulos ainda desta semana.

Outro exemplo de falta de continuidade é o personagem do Dr. Renan (Álamo Facó). Não o médico que delineava o tratamento nem muito menos a frequência das sessões de hipnose, mas sim o próprio paciente, Atílio. A escolha de Álamo Facó como psicólogo já foi infeliz pela clara falta de experiência de vida para viver um personagem que tem abrangente conhecimento da complexidade da mente humana. As sessões de hipnose com o personagem do Atílio neutralizaram o personagem tirando dele toda a credibilidade, também frente à Linda. Vemos uma atriz eclética como Bruna Linzmeyer sendo desperdiçada com cenas mínimas, além de não ter nenhuma relevância na trama, fora o aspecto didático do autor, que procura de uma forma superficial nos adentar no universo pessoal de um autista.

Há também as pequenas lições de espiritismo, incluindo fases como “a passagem” ou “ficar preso à terra por ter ainda que resolver pendências”. Carrasco não nos poupa da superficialidade infame de abordar o conflito Israel-Palestina em diálogos blitz, compostos de acusações en passant, no corredor do hospital, de Pérsio (Mouhamed Harfouch) à médica de origem israelense, Rebecca (Paula Braun), sobre “a terra que vocês roubaram” – referindo-se ao território ocupado na Palestina.

Engodo dramatúrgico

O personagem da dama do teatro Nathalia Thimberg apareceu pela primeira vez suscitando um quadro de doença indefinida, mas que resultava na incapacidade de viver sozinha. As primeiras cenas tinham um quê de uma personagem com demência, ratificado pela rapidez com que a filha Pilar (Suzana Vieira) a retirou da chácara em que vivia. Só deu tempo para fazer uma malinha. Logo nos primeiros dias na casa da família Khoury, a personagem é a única a dar um show de talento e também de lucidez à família – quem, como diz um ditado alemão, está cheia de cadáveres no porão.

O papel concedido à Rosa Maria Murtinho também mostra indefinições do tipo roleta russa. Quando Tamara se aliou a Félix no seu plano maquiavélico, o personagem ganhou forma, espaço e conteúdo. Depois da volta de Edith (Barbara Paz) para a casa da família Khoury, a personagem foi literalmente neutralizada e agora tem diálogos mínimos, superficiais e igualmente supérfulos para a trama.

Há semanas o núcleo Márcia (Elisabeht Savalla) e Valdirene (Tata Werneck) sufoca o espectador com cenas longuíssimas, cheia de exclamações, sem acrescentar nada à trama e, sim, ratificar o estereótipo da Periguete reforçado pela música-tema de autoria Gabriel Valin. A interminável e exaustiva projeção dos sonhos da mãe para filha em arrumar um milionário é repetida além do esgotamento mental tolerável.

O comportamento da advogada Sylvia (Carol Castro) gerou cartas de reclamação de vários advogados criticando a falta de ética da personagem, por incentivar clientes a mentirem em juízo (ver aquie aqui).

Ajuda terceirizada

A necessidade de esclarecimento da trama de Amor à vida está bem espelhada em vários setores midiáticos: No VideoShow, no programa matinal de Ana Maria Braga e, claro, todos os domingos no Programa do Faustão: seja com a visita da cantora Paula Fernandes com o tema “Um ser amor”, do casal Bruno e Paloma; seja com Antonio Fagundes explicando que, na realidade, o personagem Cesar Khoury não é tão mal assim (enquanto no Twitter os seguidores afirmam: “O vilão dessa história toda é o César!”). No Domingão… de 8/9, foi a vez do cantor Daniel, aclamado pelo apresentador como exemplo de ética frente à uma carreira de 30 anos, “sem escândalos e com muita humildade”. Ganhou um bloco inteiro no programa e, claro, apresentou a música-tema da novela.

No artigo “Novela explicada“ (8/9), o colunista Maurício Stycer, da Folha de S.Paulo, critica o alto teor didático escolhido pelo autor e afirma: “Oferecer ao público a chance de pensar é sempre um risco”.

Seria injusto afirmar que a Amor à vida é totalmente isenta de bons momentos com atores de grande talento como Mateus Solano, Juliano Cazarré, Nathalia Thimberg, a adorável Françoise Forton, no papel de Gigi, Bruna Linzmeyer e a grand dame das novelas, Susana Viera, todos eles muito aquém das suas possibilidades, num grande desperdício do horário nobre e da nossa paciência.

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Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988