Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Inventário MTV

A partir de 1º de outubro, uma carga de 33 mil fitas do tipo betacam aguardará por caminhões de mudança que irão resgatá-la do Edifício Victor Civita, ao número 52 da Avenida Professor Alfonso Bovero, no bairro do Sumaré, em São Paulo. A fitoteca terá então um novo dono. Estão ali algo em torno de 20 mil clipes, shows acústicos com Titãs, Rita Lee, Cássia Eller, Zeca Pagodinho, Charlie Brown Jr., Capital Inicial e até de Roberto Carlos – que nunca foi ao ar, graças ao veto da Globo – e cenas antológicas como Caetano Veloso clamando por “vergonha na cara, emetevê” durante a premiação do Video Music Brasil (VMB) de 2007.

Com a devolução da marca MTV ao grupo Viacom, o acervo do canal passa para as mãos do grupo internacional e tem destino ainda incógnito lá. “Dava até pra fazer um canal Viva de MTV, só com reprises do que tem aí, se eles (Viacom) quiserem”, sugere Zico Goes, diretor de programação com 20 anos de serviços prestados na MTV, emissora que vai fechando as cortinas. Apesar da pecha de moderninha, a MTV tem apenas 10% do acervo de 23 anos digitalizados. Ali estão todos os VMBs, todos os Acústicos MTV, a história do canal está ali, desde os programas de Rita Lee, que fazia o Teveleezão, e do Netos do Amaral, com Marcelo Tas, logo no comecinho”, conta Valter Pascotto, diretor de Operação.

A quinze dias de fechar a “lojinha”, Valtinho, como é conhecido na MTV, não foi procurado por ninguém da Viacom para tratar da mudança.

Papel de laboratório

A pedido da Abril e da Viacom, a negociação pela venda do acervo passou por um “pente fino”, feito pelo próprio Goes. “Porque tem muita coisa gravada que não serve a ninguém, matérias datadas do jornalismo ou uma cabeça de programa gravada aqui, que serve apenas como registro histórico. Fazemos essa seleção agora, que pode ser para um documentário que, aliás, quero produzir: pretendo pedir licença e até parceria, tanto de um como de outro”, conta Zico. A ideia já conta com parceria de André Vaissman, que foi diretor de programação do canal.

Zico também planeja escrever um livro, com a transcrição dos mais de 40 depoimentos dados à série My MTV, iniciada em agosto, que trouxe de volta ao canal uma considerável lista de notáveis, gente que a emissora da música revelou para outras estações de TV.

O próprio Zico se surpreendeu com as descobertas encontradas em seu levantamento sobre o acervo. Como o primeiro show do Farofa Carioca (no qual apareceu um tal de Seu Jorge), a primeira vez que os Racionais MC falaram à TV ou a primeira entrevista de Marcelo Bonfá e Dado Villa Lobos após a morte de Renato Russo.

No dia 26, a MTV promove uma festa ao vivo em sua sede, no Sumaré, com shows de bandas. Funcionários, ex-empregados e amigos serão vistos circulando pelos corredores, entre comes e bebes. Será o epílogo para a transferência da marca para a Viacom, que também merecerá chamadas pelo canal. “Vamos anunciar que a MTV acaba aqui, mas continua lá”, conta Zico. Já sem medição no Ibope e departamento comercial, a emissora funciona até o dia 30, quando ex-VJs anunciarão uma série de clipes e Astrid Fontenelle, primeira a entrar no ar quando a MTV surgiu, em 1990, dará o adeus. Gravada na semana passada, a cena não terá lágrimas. “Fui muito digna”, antecipa Astrid.

Nascida num tempo em que internet ainda era uma raridade e o YouTube soava mais à ficção científica, a MTV fez as vezes de laboratório que os canais abertos não ousavam ser. Essa experimentação já não caberá na nova MTV, que passa a ser um canal pago, com alguma produção nacional, mas em menor escala que a do canal agora desativado pelo grupo Abril. “Não será a mesma coisa porque as produções serão terceirizadas, mas eles não estão errados: isso é o certo a fazer nesse momento. É mais moderno e é economicamente mais viável”, reconhece Zico.

“Desde 1995, a MTV já identificava duas coisas importantes: música não dá audiência e videoclipe também não. A música dá audiência quando é apresentada em um grande evento, como o Rock in Rio ou o Lollapalooza.” Vem daí a iniciativa de criar formatos longos, como “os gringos”, cita o diretor, em oposição aos “shortforms” de videoclipe. “É preciso criar um arco dramático, fazer uma história, documentários de banda, ao invés de apenas mostrar o clipe. Por isso começamos a produzir programas como o MTV na Estrada”, lembra.

O papel de laboratório agora cabe à web. “Mas, sem querer ser arrogante, esse mesmo canal influenciou a própria internet”, sentencia Zico.

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Veteranos sugerem transformar prédio da MTV em museu

A história dos acervos da TV brasileira não reserva grande expectativa de um final feliz. Há anos batalhando pela criação de um Museu da TV Brasileira, a atriz Vida Alves guarda, em sua casa, no bairro do Sumaré, uma boa parte do que a Pró-TV, associação de pioneiros presidida por ela, amealhou. No sábado, em celebração que comemorou os 63 anos da TV no Brasil – a se completarem amanhã, data em que a Tupi, em 1950, entrou no ar, – os mais de 700 profissionais ou ex-profissionais presentes passaram a encampar uma bandeira: transformar a sede da atual MTV, no Edifício Victor Civita, no futuro Museu da TV brasileira.

O prédio, afinal, foi construído por Assis Chateaubriand, como denuncia o painel com temática indígena na fachada, e serviu à Tupi em seus últimos anos. A questão será levada às autoridades municipais e estaduais, visto que a Pró-TV não tem dinheiro para bancar a aquisição do imóvel, já tombado pelo Patrimônio Histórico. Mesmo assim, há o receio de que ali se instale uma igreja ou empresa de outro ramo.

No plano virtual, o Museu da TV guarda boas notícias para a temporada. O acervo reunido por Vida Alves está em vias de ser todo digitalizado. Inscrito na Lei Rouanet, o material está sob os cuidados de Ricardo Cavalheira. O acervo tem hoje material da Tupi, da Excelsior, da Paulista e até da Manchete.

“Estamos desenvolvendo um projeto com a Pró-TV, o Museu da TV, para digitalizar e disponibilizar gratuitamente todo o material do acervo”, diz Cavalheira. “A ideia é que a gente possa acessar de forma gratuita tudo o que lá está em áudio, vídeo, fotos e documentação. Queremos disponibilizar tudo em um portal que vai ficar dentro do site da Pró-TV.”

Nas suas contas, o acervo deverá estar na internet até julho de 2014, contando com a boa imagem da Pró-TV para captar os recursos necessários. Além do material de arquivo, a instituição vem gravando depoimentos com veteranos já há alguns anos, o que será incorporado no site. São longos relatos das histórias vividas por esses profissionais, alguns deles já mortos, na televisão aberta.

“São milhares de roteiros originais, muitas fichas da Censura, que apareciam no início dos programas, avisando se a indicação era livre ou não. Se juntar o material de vídeo, são mais de mil horas de diversas emissoras que praticamente serão 100% acessados por qualquer cidadão. Algo como 3.010 biografias. 10 mil fotos, um material realmente interessante”, diz.

Projeto Memória

Embora tenha sido a última emissora a fechar as portas, a Manchete é o caso de maior descaso de acervo da TV nacional. Parte do material está sob os cuidados da Massa Falida. Pantanal e Ana Raio e Zé Trovão, novelas da fase mais promissora da teledramaturgia da emissora, foram exibidas no SBT há poucos anos e têm seus direitos nas mãos do empresário e diretor José Paulo Vallone.

Muitas cenas estão guardadas ainda na sede da TV Cultura, que comprou móveis leiloados dos bens da Manchete e lá encontrou uma série de fitas esquecidas pelos antigos donos. Duetos musicais, programas jornalísticos e outras produções de teledramaturgia estão divididas por mãos diferentes, sem acerto judicial sobre a propriedade do acervo que foi da família Bloch.

A Record, que já tem aval da lei Rouanet para tanto, também tem um projeto de digitalização do acervo, e o seu baú inclui as preciosas cenas dos festivais de música dos anos 60.

Em contrapartida, a Globo vem cuidando de seu acervo há mais de 15 anos, com o Projeto Memória, que registra longos depoimentos de seus profissionais, atores, diretores, autores, cenógrafos, com agendamento organizado. É um bom início.

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Cristina Padiglione é colunista do Estado de S.Paulo