Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

TV pública não é para dar ibope

Se fosse simples, já estaria resolvido. A avaliação das TVs públicas é uma questão ainda sem resposta, inclusive nos países onde elas são tradicionais. A cobrança é permanente – tem quem não larga do pé, tem os que são marcadores honestos e tem os outros, animados por objetivos escondidos, como o embate político e o carreirismo idem.

Temos que dar atenções diferenciadas a todas essas vertentes. Os críticos honestos são necessários e com eles podemos ter debates, mesmo difusos, para nos protegermos da nossa prepotência e autossuficiência, letais ao longo do tempo. Os outros tipos de críticos são perniciosos e devemos nos preparar para matar a cobra e mostrar o pau, prenhes das boas intenções que nos governam. Ou seja, devemos ter argumentos sustentados por dados e informações consistentes e verificáveis.

O questionamento teimoso que pesa sobre nós é a audiência. Trata-se de um reducionismo pernicioso, raso e precário, construído, calcificado e acomodado entre tantos conceitos difusos que embrulham a opinião pública. Aliás, a tradução consolidada disso é o IBOPE – tão consolidada que entrou para o Aurélio como substantivo. Assim:

Ibope – Substantivo masculino. Bras. 1.Número-índice (q. v.) obtido mediante pesquisas de opinião pública, com a primordial finalidade de orientar a propaganda e a moderna técnica de vendas, preparar estudos de mercado e fazer sondagens sobre preferências do público. 2.Restr. Índice de audiência (4): Este programa dará ibope: enfoca importantes questões sociais. 3.P. ext. Prestígio (4): Convidar fulano dá ibope.

Creio que devemos entender o primeiro conceito do verbete como o pertinente ao nosso debate. O IBOPE mede mais que o estoque de audiência e consegue identificar e qualificar outras variáveis, mas o que pesa sobre as TVs públicas e tem significação para seus críticos é isso – o estoque de audiência. A definição inscrita no Aurélio está correta: esse dado só é importante para as operações e estratégias comerciais – ou seja, para orientar as relações e decisões entre veículos e anunciantes.

Razão de ser

Os objetivos das tvs públicas são bem outros e, por isto, devem ser avaliadas por outros indicadores. Como não apareceu ainda uma régua mágica para medir e explicitar seu desempenho, penso que devemos elaborar conceitos e discursos, dos quais vamos derivar números e gráficos lógicos para a atividade. TV pública tem que dar à sociedade os conteúdos relevantes, cobrindo os imensos vazios deixados pelos veículos comerciais, comprometidos com os resultados lucrativos. Se fosse para fazer estoque, a tv pública deixaria de lado diversos conteúdos que, de origem, não são destinados aos números vistosos do IBOPE- como os programas que servem aos portadores de necessidades especiais, aos artistas iniciantes, os que se dirigem às comunidades sem poder de consumo, os que abordam em profundidade educação ambiental, para a saúde, etc. Na TV Brasil, por exemplo, índios e quilombolas não são atrações exóticas ou carentes de “civilização”.

Claro que a TV pública deve se empenhar por conquistar audiência e por isto caprichar para tornar palatável e atraente o conteúdo sofisticado e dito de qualidade. Aqui o que for popular deve ganhar tratamento para ser nutritivo para a cidadania, sem deixar de ser popular. Portanto, não devemos rifar o caráter, os valores e os objetivos que justificam a nossa existência por rendição ao apetite pela audiência. Com talento, dignidade, direção e sentido, a tv pública pode, sim, empinar-se diante dos críticos e defender suas escolhas e provar que seus conteúdos não têm que ser intragáveis.

Nossa palavra chave é significação. Mais importante do que um índice de audiência oco é a significação do conteúdo, o efeito, a mudança, a reflexão que pode gerar. Todo programa deve ter objetivos e a possibilidade de os atingir, pelo menos em parte, é que demonstra sua significação e certifica seu desempenho, independente do percentual no ibope. Um programa sobre meio ambiente ajuda a mobilização comunitária em defesa de um parque? Os surdos aprovam o programa com libras? Os professores de música se sentiram ajudados pelo programa sobre musicalização infantil? Os telespectadores entenderam melhor as manifestações de rua? As bandas pops conseguiram mais oportunidades pela visibilidade na tv? Tudo isso é mensurável e, de um modo ou de outro, toda ação é mensurável. Algumas vezes por pesquisas qualitativas, em que uma amostra revela a significação (ou falta de ) de um conteúdo. Outras vezes pelos indicadores indiretos – como o aumento de plateia de música de concerto ou do engajamento comunitário.

Falando nisso, se fossemos medir pelo IBOPE as audiências das mídias ninjas, teríamos algo como um meio-traço, mas reparem no efeito que causam! Claro, esses efeitos não são resultado apenas do que veiculam, porque há uma articulação extremamente relevante com células ativas incrustadas nos tecidos sociais. E a oportunidade desse tipo de aliança deve pertencer também à tv pública. Vale à pena discutirmos essa dinâmica, a partir desse exemplo (há outros exemplos menos visíveis Brasil afora) para descobrirmos como construir e praticar essas alianças. Questão de atitude…

Há que se discutir também, com empenho especial, os modos de medir esses resultados, contando com as contribuições de especialistas e da academia. A título de provocação, eis algumas variáveis que podemos produzir, recolher e examinar:

** os dados do IBOPE- sem as afetações comerciais, contêm, sim, informações úteis para ajudar os que tomam decisões estratégicas;

** avaliações por grupos amostrais, obtidos do recorte social que está no alvo do conteúdo veiculado;

** mapeamento da disponibilização dos conteúdos- internet, a rede de conveniadas, a cessão a outros veículos, a procura por interessados (escolas, associações, etc.) – ou seja, a tv pública usa tecnologia e plataformas para servir à sociedade de vários modos, ainda não totalizados;

** a identificação de influências de formas e conteúdos da tv pública em outras tvs (pode se realizar por meio de trabalhos acadêmicos). A experimentação, o uso da tecnologia para melhorar a servidão à sociedade e o acolhimento de conteúdos relevantes e não contemplados pela mídia comercial por falta de lucro, às vezes “contaminam” ou constrangem os veículos privados;

** identificação da presença nacional nas telas das TVs públicas, em contraponto ao predomínio de algumas regiões e temas nos veículos privados, pela sua relevância econômica e política, em detrimento dos interesses de extensas parcelas da sociedade;

** mapa da presença da programação no território brasileiro e em outros países;

** reconhecimentos por meio de prêmios e outras manifestações;

** ações de melhoria da tv pública brasileira – visando qualidade de gestão e programação das emissoras do campo público de tv;

** apoio à construção do caráter da tv pública brasileira, objetivando a sobrevivência do conceito, sempre ameaçado quando das alterações na direção das emissoras.

Essas ações podem ser tabuladas e expressas em números e, portanto, comparadas e acompanhadas. Com estes dados, a tv pública pode proteger o seu caráter, a sua razão de ser, construir seus percursos. E qualificar seus críticos, que deles precisamos muito.

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Antônio Achilis Silva é jornalista, especialista em Gestão Estratégica da Informação, assessor da Diretoria de Jornalismo da EBC; foi presidente da Fundação TV Minas e da ABEPEC- Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais