Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Reportagem denuncia professor que lambia alunas

Uma imagem sempre “fala” ou “conversa” com tudo que está à nossa volta, em especial com o que falamos ou escrevemos. É essa relação que dirige nossos olhos para pontos importantes de uma foto. Quem nunca leu uma legenda em uma foto de jornal? Quem nunca partiu do GC em um vídeo para interpretar aquilo que se vê na tela? Quem nunca trilhou seu caminho de interpretação em um quadro baseado naquilo que já se escreveu sobre ele?

Essa relação é importante. Todos que trabalham com imprensa sabem disso: ao escolher dizer algo ao lado de uma imagem estamos, de fato, buscando que nosso leitor ou espectador a veja como nós a vemos. Esse recurso é válido, pois ajuda o profissional de comunicação a ancorar a imagem nos fatos que descreve.

Infelizmente tal recurso também pode ser utilizado para conduzir a uma interpretação torpe e tergiversada da imagem. Há diversos exemplos. Em 2012, um vídeo se alastrou pelas redes sociaisao denunciar um genocida africano chamado Joseph Kony. Em menos de 15 dias, tal vídeo teve mais de 100 milhões de visualizações. Um fenômeno incomparável, talvez o maior viral até então. Tanta repercussão se deu pelo fato de uma ONG afirmar que o tal genocida vivia em Uganda, sequestrava e matava crianças e que algo precisava ser feito.

Riscos da velocidade da informação

Em meio à denúncia, a ONG pedia a colaboração modesta de US$ 30 para uma campanha contra o medonho criminoso. Kony de fato praticou muitas atrocidades. Mas já não vivia em Uganda, como denunciado no documentário, e não era o responsável por tudo o que dele diziam. Após tantas visualizações, denúncias e palavras de ordem, estima-se que a ONG que postou o vídeo tenha arrecadado US$ 15 milhões de dólares. Dinheiro que parece não ter sido aplicado à tal campanha.

Mas esse tipo de caso não acontece apenas com vídeos virais e tão pouco exclui os grandes meios de comunicação. Citemos outro exemplo, agora com o uso de fotografia. No domingo (27/10/2013), durante a aplicação da segunda parte do Enem 2013, um aluno de Ciência Contábeis da USP deu um passa-moleque em parte da imprensa de São Paulo. Fingindo ter se atrasado, minutos após o fechamento dos portões de um local de prova, fez a tradicional cena de frustração que acompanha esse tipo de matéria. Nas entrevistas que concedeu, disse que perdeu a oportunidade de cursar ciências contábeis em São Carlos, na UFSCar, curso inexistente naquele campus. A Folha de S.Paulo revelou a brincadeira com o orgulho de não ter entrado na conversa, mas com o constrangimento de ter publicado a foto do suposto atrasado na primeira página de sua edição de segunda-feira.

Os dois casos revelam os riscos que a velocidade da informação provoca. De um lado, a pressa industrial que muitos órgãos de imprensa têm em gerar notícias para um público sedento de novidades, em uma concorrência cada vez mais agressiva. No caso do “atrasado”, vimos que a foto e as falsas entrevistas foram publicadas com a ingenuidade de quem esquece um dos princípios básicos do jornalismo: a apuração. Todo conteúdo publicado tem de ser verificado em termos de sua veracidade.

Conduzidos pelas falas

De outro lado, o distinto público, suscetível a qualquer notícia de grande impacto emocional, e com pouca disposição para uma reflexão mais cautelosa diante de matérias que são assimiladas como reproduções fieis da realidade. A lição que deveríamos ter aprendido, é de que qualquer informação ricamente ilustrada e viralizada – como o vídeo Kony – não pode simplesmente ser assimilada e tomada como verdade sem que antes averiguemos sua origem. Será que alguém, antes de compartilhar, ou doar os US$ 30,00, levantou questões como: essas imagens são realmente atuais? Seriam efetivamente de Uganda? Será que tal genocida ainda está em atividade? Que ONG é essa? Em nossa era de internet, boa parte das respostas a estas perguntas estaria apenas a um clique de distância.

Em meio a tanta velocidade na geração e disseminação de informações, não é apenas a apuração jornalística que fica comprometida. Nosso posicionamento crítico diante do que nos oferecem também vai para o vinagre. Esquecemos que todo fato inclui diversas pessoas, diversos lados. Ninguém pode simplesmente ser acusado e julgado midiaticamente. Ninguém pode tomar determinadas informações como verdadeiras sem que uma verificação mais aprofundada dos fatos se dê.

Na terça-feira (29/10/2013), vimos de perto o mal que esse fenômeno de superficialidades sob alta velocidade pode fazer. No programa “jornalístico” de José Luiz Datena, uma reportagem denunciava um professor que foi flagrado lambendo alunas do ensino fundamental numa escola pública de São Paulo. Rapidamente, o referido professor foi acusado de pedofilia. Essa seria a interpretação mais óbvia da imagem: somos conduzidos pelas falas do apresentador e da pessoa responsável pela gravação.

Senso comum

Se por um lado partimos do óbvio, por outro esquecemos que o tal professor pode ter realizado o ato dentro de um contexto específico. Podemos não concordar, mas precisamos ouvi-lo, ouvir os demais presentes durante o fato, mesmo sendo crianças. Além deouvir também seus colegas de trabalho e outras pessoas, adultas, do mesmo ambiente profissional. É imprescindível entender melhor a questão, antes de jogar contra um profissional de educação uma acusação que lhe custaria toda a carreira. Além dos cuidados com os transtornos familiares e pessoais que acompanham este tipo de ocorrência. Afinal, quem não se lembra do caso da Escola Base em São Paulo? Ali, acusados foram condenados sem julgamento prévio. O circo midiático formado ao redor de um pretenso abuso de dois menores de idade interferiu até mesmo no bom senso dos responsáveis pela apuração policial dos fatos. Anos depois, descoberta a mentira, os donos da escola tiveram sua vida destruída, sem direito a defesa. Mesmo inocentados posteriormente e a despeito de indenizações pagas por empresas jornalísticas por imposição de condenação ou acordo judicial, nada reparará os danos que tiveram. Materiais e emocionais.

Mas voltando ao nosso professor de matemática, cabe aqui saber que ele não teve a oportunidade de dar sua versão. Foi condenado e julgado por imagens. Indiscutivelmente errou ao ter contato físico com suas alunas, menores de idade. Mesmo se maiores fossem, também teria errado. Mas o contexto desse erro de conduta não nos é dado.

Uma rápida observação do vídeo em questão pode nos esclarecer muito. Em menos de 10 segundos o âncora afirma que “diz que um cara, professor de matemática…”. Diziam os mais velhos que “o diabo se esconde nos detalhes”. Por mais informal que seja a linguagem de Datena, dedicado à necessidade de se comunicar com seu público-alvo da forma mais direta possível, essa frase não deixa de ser reveladora. Descuido de forma ou verdade de conduta? Ela já incute um pré-julgamento moral do professor, imediatamente representado como alguém mal, escondido sob a pele daquele que deveria estar cuidando de nossos filhos. Nenhum jornalista sério deveria introduzir um julgamento com uma estrutura tão impessoal: “diz que” representa algo sem origem, sem responsabilidade, algo que o apresentador não toma para si, mas joga no senso comum da interpretação de quem quer dar uma informação sem o comprometimento daquele que tem certeza do que está a dizer pela convicção construída a partir de fatos apurados. Linguisticamente é assim: quando queremos tirar o corpo fora, impessoalizamos e colocamos a responsabilidade numa entidade inexistente.

“Lambida” não é assédio sexual

É ainda nesse início que ouvimos a condenação verbal em rede nacional: “…professor tarado…”. Até esse ponto, nada foi visto, nada relatado no tempo e no espaço. Simplesmente se dava a notícia como fato consumado e sentença já determinada: “professor tarado”. Na matéria, os caracteres reforçavam a sentença condenatória: “aula de safadeza”. Além da força da imagem, e da opinião daqueles que a veiculam, nada nos é oferecido. A autora do vídeo mostrado para milhões de pessoas no Brasil e disponível para o mundo todo pela internet é uma das alunas do referido professor. A menina afirma que o professor tentou lambê-la e assediou outra aluna com a frase “eu te amo” escrita na lousa. Na denúncia da menina, um corte de edição preciso. O repórter pergunta qual a idade da outra garota e a menina afirma que ela teria também a idade dela, 14 anos. No mesmo vídeo, em menos de 1 minuto e meio, a aluna afirma que o professor mais brinca do que dá aula. A mãe da aluna mostra-se indignada com o professor, pois esperava uma conduta adequada. O repórter afirma que o professor alegou que se tratava de brincadeira. Em momento algum o repórter informa se essa informação foi obtida diretamente com o professor ou se a conseguiu por meio do relato de outras pessoas. Seria mesmo verdade que um professor apenas brincasse ao invés de dar aula?

Na cena seguinte a repórter parece seguir o princípio da busca do “outro lado”. Não pela voz do professor, mas por meio do relato da diretora. Em momento algum o repórter informa se o professor não fora ouvido por opção própria ou pela iniciativa do autor da matéria. Na mesma matéria, o repórter diz que a diretora regional de ensino se manifestou. Uma mulher aparece falando. Não está claro se é a diretora da escola ou a diretora regional. Na fala da mulher, de poucos segundos, ela afirma o que “pode acontecer”, com o cuidado de quem sabe que muito mais deveria ser apurado antes de qualquer palavra final. O repórter quer mais. Pergunta se, em caso de demissão, o professor seria impedido de dar aula em “qualquer escola”. A mulher, seja lá quem ela for, confirma: “Em qualquer escola.”

Apesar de todo esse relato, que claramente incrimina o professor, constata-se que o corpo docente da escola o apoia. Seria natural pensar que o apoio dos colegas poderia se dar por alguma espécie de corporativismo de classe. Afinal, por pior que seja o comportamento de um amigo profissional, cabe a nós, membros de uma categoria, defender com unhas e dentes nossa imagem perante o público externo, varrer nossos erros para baixo do tapete e lavar a roupa suja em casa. Mas isso não parece ser verdade uma vez que, na mesma escola onde o fato ocorreu, há uma grande insatisfação dos alunos contra a aluna denunciante. No extremo, a aluna, de acusadora poderia se tornar vítima de agressões verbais e outros tipos de provocação de colegas que desaprovam sua iniciativa e a de sua mãe. Será que toda a escola seria conivente com a pedofilia? Achamos que não. Talvez por saberem o contexto das imagens, apesar de possuírem distintas opiniões sobre a brincadeira do professor, todos parecem concordar com um fato: de que “lambida” não se trata de um assédio sexual, de um covarde ato de pedofilia.

Informação de qualidade

Medidas judicias são necessárias. A Associação dos Professores do Estado de São Paulo, Apeoesp, forneceu auxílio legal para o professor. Na visão mais otimista, o professor é chamado à atenção por conduta inapropriada. A Rede Bandeirantes de TV lhe paga alguma indenização por danos morais, por meio de condenação ou acordo. No mundo encantado de justiça brasileira, o professor teria direito de resposta. Na vida real, as condições são desiguais. O estrago, provocado em menos de três minutos, numa reportagem em TV aberta, em cadeia nacional, para milhões de pessoas, é incalculável. Um processo como esse pode durar anos. Mesmo em caso de vitória, o professor teria sofrido um desgaste pessoal e sua reputação jogada no lixo, por erros que cometeu. E também pelos que não cometeu. Isso sem pensar no impacto que esse tipo de matéria não-jornalística teria na vida pessoal do professor. Esposa, filhos e família: na melhor das hipóteses teriam seu convívio social impossibilitado. Além disso, mesmo no caso da vitória do professor nos tribunais, esta jamais teria a mesma repercussão que a acusação teve.

Numa sociedade democrática – e por isso justa –, quem pode proteger um cidadão comum do poder agressivo, irresponsável e desproporcional daqueles que possuem microfones e meios de difusão? A liberdade de imprensa e de expressão são valores caros demais para serem usados irresponsavelmente. Que o digam Kony, o garoto que enganou a imprensa no dia do Enem e os donos da Escola Base. E que lamente o professor denunciado, julgado e sentenciado por palavras, em menos de três minutos, sem direito de defesa.

Outros casos semelhantes já ocorreram. Outros ocorrerão. Cabe a nós não esquecer e defender a informação de qualidade e corretamente apurada.

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Sérgio de Moraes Paulo e Rodrigo Esteves de Lima-Lopes são, respectivamente, bacharel e mestre em Geografia Humana e pesquisador em tecnologia e doutor em Linguística Aplicada