Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os mocinhos da novela das nove

Num país que ainda não teve uma experiência profunda em educação, novela acabou se tornando importante demais. E ditando, há décadas, comportamento. Amor à vida chegou ao final na última sexta-feira, marcando o ápice da luta pelos direitos dos homossexuais. No primeiro dia de fevereiro de 2014, o Brasil acordou, certamente, respeitando mais o amor.

No começo dos anos 2000, em artigo, a organização Pan-Americana da Saúde fazia uma analise importante da influencia das telenovelas na disseminação de ações positivas que favoreciam a saúde. As ações de marketing social, vivendo seu auge naquele momento, traziam para dentro dos lares temas espinhosos como Aids, alcoolismo e síndrome de Down… O fenômeno era liderado pelas duas maiores produtoras de telenovelas do mundo: a mexicana Televisa e a brasileira Rede Globo. Mas o marketing social podia ir além do recorte saúde e foi! E começou a ser usado, nos dois países, onde as brechas educacionais não permitiam abreviar atrasos culturais com a velocidade que o futuro exigia, para mudar comportamentos.

Nos anos 1990, o preconceito racial contra negros entrou mais fortemente para a dramaturgia. Mas, nesse caso, com destaque para o Brasil, uma vez que a presença de seres humanos escravizados de origem africana foi imensamente menor no México. O preconceito pelo preconceito, a ocupação pelos negros de outros espaços na esfera social que fosse além das senzalas e das cozinhas, o amor inter-racial começaram a ter espaço nas telenovelas, catequizando Brasil a fora com a ideia de que racismo não é bom. Com a maior visibilidade dos personagens negros e do tema racismo, o debate foi para a vida real. Com isso foi possível, reforçar a Lei Afonso Arinos de 1951, ao tornar o racismo crime inafiançável e, em 2002, a provação no congresso do projeto de lei 4370/98, de autoria do deputado Paulo Paim, que instituiu mínimo de 25% de participação de afrodescendentes no número total de atores e figurantes nos programas de televisão e de 40% nas peças publicitárias.

Vilão, dramaturgia e violência

Foi assim, também, com a necessidade constante de reafirmação da presença ativa das mulheres em suas sociedades, tradicionalmente machistas. As mulheres das novelas, mesmo não deixando de ser mocinhas à espera de um galã, começaram a ocupar o tempo dessa espera trabalhando e conquistando cada dia mais espaço no mercado de trabalho. E isso se refletia na construção de uma nova sociedade. A violência contra a mulher deixou de ser assunto de casal e passou a ser o assunto do dia seguinte, de todos nós e da polícia. Em 1985 foi inaugurada na cidade de São a Paulo a primeira delegacia exclusiva para crimes contra mulheres. Mas, sem dúvida, foi depois da novela Mulheres apaixonadas, de 2003, onde uma professora sofria com as constantes agressões do marido, que o tema entrou de vez para os lares brasileiros, culminando na criação da Lei Maria da Penha, em 2006, que criminaliza a violência doméstica que tem mulheres, geralmente, como maiores vítimas.

Quando Amor à vida estreou, em maio do ano passado, o Brasil ainda estava de ressaca dos meses das maldades de uma das maiores vilãs da teledramaturgia brasileira. A personagem, Carminha, da atriz Adriana Esteves, na novela Avenida Brasil, do autor João Emanuel Carneiro. Além de um grande texto, uma grande interpretação e recordes de audiência, Carminha deixava um recado preocupante: o Brasil estava encantando pelo mal! Os vilões se sucediam nos papéis principais nas telenovelas do horário nobre há quase uma década.

Mocinhas e galãs acabaram se tornando uma escada para o mal, restando ao público esperar uma revanche no último capítulo, que nunca era proporcional a tudo que tinha sido feito ao longo de toda novela. E os finais tendiam a ser decepcionantes. Atores e atrizes não se cansavam de desejar um vilão em seus currículos como ápice de suas carreiras, talvez uma forma de exercer com mais vigor seu potencial de atuação. Em tempos de textos pouco inovadores no teatro, no cinema e até mesmo na televisão, é reservado aos vilões um leque mais amplo e interessante no ofício de atuar. Por outro lado, quanto maior era a capacidade de um vilão de fazer o mal, sem entrar no mérito de quem influencia quem, pior estava a nossa sociedade. Assim como nas novelas, a vida real foi ficando a cada dia mais violenta, os vilões da vida real mais cruéis e a maldade mais próxima… E foi nesse cenário que estreou Amor à vida e mais um vilão: Felix! Já nos primeiros capítulos as apostas eram de que seria um vilão pior do que foi Carminha. Algo assustador para nós, que sonhamos com uma televisão onde a violência tenha menos espaço.

De vilão a mocinho

À medida que a drama se desenvolvia, o personagem conseguia cumprir seu destino e, em muito pouco tempo, o Brasil mais uma vez se via encantado pelo mal. A homossexualidade não era algo inédito, mas parecia ser a primeira oportunidade para uma interpretação que tirasse um personagem gay do mundo caricato em que viviam. E mais uma vez, ao ator que interpretava o vilão era dada a garantia de uma grande atuação. E foi assim que Mateus Solano foi conduzindo seu personagem, um gay quase enrustido, sistematicamente traído pelos trejeitos e bordões que caíram no gosto do público. Sua maldade ia da vontade quase paranoica de tirar do pai o comando dos negócios a jogar um bebê no lixo. Até a descoberta de que sua maldade não era gratuita e tinha como fonte a rejeição profunda de um pai que não aceitava o filho homossexual. O Felix, afinal, era alguém que cresceu querendo o amor desse pai. Mas só pode querer amor, quem tem amor para dar! E ao invés de esperar o último capítulo, ao vilão de Amor à vida, muito diferentemente de seus antecessores, foi dado tempo suficiente para o arrependimento. E ele se arrependeu!

E com seu arrependimento algumas das cenas e diálogos mais emocionantes da dramaturgia brasileira. O amor, que andava meio em baixa, relegado ao último capítulo, na cena final, no último beijo, foi surgindo aos poucos. E encantando aos poucos um público quase desacostumado a sua presença. A essa altura já se conseguia entender as razões de tanta maldade e uma cumplicidade foi se estabelecendo. Nesse ponto, a humanidade que foi dada a Felix trouxe à tona a realidade de que todos nós temos um conhecido, amigo ou parente homossexual. Mas o que muitos, até então, não se permitiam entender é que o amor entre iguais é igual. A partir do pleno entendimento dessa verdade, a torcida passou a ser pelo amor, e não pela vingança.

Amor daqueles grandes que fazia o Brasil torcer e parar para ver o beijo final do galã na mocinha das novelas da nossa infância. Sobretudo para quem cresceu vendo as inesquecíveis novelas de Janete Clair. A torcida era imensa pelo par romântico principal, Felix e Niko (Thiago Fragoso). Não importava se o beijo seria do mocinho no mocinho. Novela tem de terminar com beijo. E teve campanha nas redes sociais (#beijafelix), teve nota do Ministério da Justiça, alegando não existir nada contra e teve o medo da emissora não conseguir dar esse passo. O beijo aconteceu e com ele o desejo de uma sociedade que respeite mais seus homossexuais. O desejo de um país onde homens e mulheres não sejam alijados do seu direito de amar.

Ah, e como foi bom torcer pelo amor, novamente!

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Renata Noiar é jornalista, Brasília, DF