Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cenas que não foram ao ar

Fui jurado em 1971, como já informei, do programa Flávio Especial, da TV Tupi de São Paulo, apresentado às terças-feiras em horário nobre por Flávio Cavalcanti. Um dia o comunicador me convidou:

– Você dá ibope, quero levá-lo para o meu programa dos domingos na TV Tupi do Rio de Janeiro.

Aceitei. Eu viajava de avião todos os sábados para o Rio, ficando hospedado num hotel de Copacabana. Tudo pago pelo programa e o cachê era ótimo.

Continuei a ser um jurado polêmico, devido à minha rude franqueza. Sempre sincero, insisti em criticar, no programa transmitido para todo o país pela Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel), o rock musical Jesus Cristo Superstar, de Andrew Lloyd Weber, com letras de Tim Rice. Metia o pau na peça, de forma violenta, e essa minha revolta foi assim comentada por Ari Torres na edição paulista do jornal Última Hora, de 12 de maio de 1972:

“O último programa dominical de Flávio Cavalcanti mais uma vez provou que tão prejudicial é o jurado grosso ou incompetente como o jurado inteligente, mas fanático e demagógico, incapaz de escutar em silêncio o que estão dizendo, para só depois retorquir, se for esse o caso. O elemento que estou incluindo na hipótese final (inteligente, fanático e demagógico) é Fernando Jorge. Incapaz de autocontrole, perturbou de novo o que se disse sobre a peça Jesus Cristo Superstar, cujo quadro inicial Flávio em boa hora incluiu em seu programa”.

Defendo-me agora. Nunca fui fanático, pois o fanatismo, para mim, é o irmão gêmeo da loucura. E também nunca agi como demagogo, como um revolucionário excitador das paixões populares. Os neutros, os ambíguos, os que não se definem, os que em vez de sangue possuem água insípida nas veias, confundem o ardor dos justos, a paixão pela verdade, com o fanatismo e a demagogia.

Um conselho

Após esses meus novos ataques à peça Jesus Cristo Superstar na televisão, o Flávio Cavalcanti me contou na sua casa de Petrópolis, no alto do bairro de Caxambu:

– Fernando, a Léa Penteado acha que você é muito grosseiro e muito violento, quando investe contra o rock musical do Andrew Lloyd Weber e do Tim Rice.

Ele se referia a uma ex-repórter do semanário Amiga, secretária de Flávio entre 1971 e 1974. Respondi:

– Ah, é? Dona Léa Penteado queria que eu, que venero Jesus, aceitasse olhar o Salvador como amante de Maria Madalena, os apóstolos como bêbados, a Madalena a lhe fazer massagens eróticas? Ela queria? Rejeito a crítica da sua secretária, Flávio, e vou prosseguir nos meus ataques a essa peça imunda.

O apresentador limitou-se a soltar estas poucas palavras:

– Compreendo você, Fernando, porém a Léa Penteado, fiel e querida amiga, fica chocada com a sua violência.

– Flávio, até Jesus Cristo, símbolo perfeito do perdão, da indulgência, foi violento quando expulsou os mercadores do templo de Deus, transformado numa ruidosa feira de comércio. Esses mercadores, lá no templo, vendiam bezerros e ovelhas, em troca de moedas. O Nazareno pegou um chicote provido de cordas e expulsou-os violentamente, derrubando os móveis, espalhando no chão o dinheiro. E gritou, enfurecido: “Não façais da casa do meu Pai um covil de ladrões!” A Bíblia descreve este episódio.

Bem atento, algo surpreso, o Flávio me ouvia. Acrescentei:

– Você me mostrou, aqui no terreno do seu lar, uma linda capela com um vitral onde a imagem de Jesus se reflete nas paredes. Isso significa que Flávio Cavalcanti crê no Verbo Divino. Portanto, não deixe a sua produção exibir quadros dessa porcaria chamada Jesus Cristo Superstar, não deixe, Flávio!

Fiz um apelo à consciência de cristão do apresentador e para o incentivar citei a seguinte frase de Marco Túlio Cícero (106-43 aC), extraída de uma das epístolas do grande estadista e orador romano:

“A minha consciência tem para mim mais peso que a opinião de todo mundo” (“Mea mihi consciencia pluris est quam omnium sermo”)

Adverti o Flávio:

– Tome cuidado com a produção do seu programa de TV. É um perigo o fato de a Léa Penteado me achar muito grosseiro e muito deselegante, por descer o meu porrete nessa peça infame.

O espanto se tornou maior na cara do Flávio. Então procurei explicar.

– Sim, é um perigo porque estamos sob a ditadura do general Emílio Garrastazu Médici. Os milicos se empenham na tarefa de bancar os moralistas, como zelosos paladinos dos bons costumes. Patrocinar a divulgação de coisas rotuladas de “imorais” constitui excelente pretexto, para eles, de suspender a transmissão de qualquer programa.

Informou a edição de 21 de julho de 1972 da revista Amiga: eu pretendia sair do júri do Programa Flávio Cavalcanti. Verdade irrefragável. Pedi ao Flávio, no fim da nossa conversa:

– Mande carta para mim, dispensando-me.

O “Senhor dos Domingos”, líder absoluto de audiência na TV brasileira, tentou me convencer a ficar no júri, porém aleguei:

– Preciso começar a escrever a minha biografia de Getúlio Vargas, não sobrará tempo.

Ele combinou:

– Quando terminar, me avise. Quero ter você outra vez no programa, mas, por favor, a Léa Penteado não deve saber disso.

– Não divulgarei nosso trato. Desejo lhe dar um conselho, no entanto: tome cuidado com a sua produção. Ela, sob o domínio da amoralidade, poderá destruir seu programa.

Burrice e amoralidade

Larguei o júri e pouco tempo depois, em março de 1973, vi na televisão o Flávio entrevistar, às oito horas da noite, numa favela de Belo Horizonte, um marido corno, a mulher que o traía e o amante da adúltera. Os três moravam na mesma casa. A mulher, apoiada pelo marido cheio de galhos na testa, dormia com um rapaz na cama do casal. O Flávio perguntou ao corno:

– Por que o senhor deixa a sua mulher dormir na sua cama com esse rapaz?

Resposta do corno:

– Ah, seu Fráviu, é purque eli é mais moçu, mais forti qui eu.

Em seguida, o apresentador perguntou à esposa do chifrudo:

– Por que a senhora dorme com esse jovem?

Resposta da mulher:

– Ah, seu Fráviu, é purque eli é mais gostosu…

Resultado, o programa foi suspenso por dois meses. José Arrabal, diretor da TV Tupi, declarou à revista Veja: o quadro com o corno manso, a adúltera e o “amante gostoso” infringiu a “ética, a moral, os nossos costumes”. O Flávio, segundo ele, nunca o deveria ter colocado no ar.

Conclusão. A burrice e a amoralidade da produção do Flávio Cavalcanti destruíram o seu programa de TV e causaram a ruína econômica do apresentador, obrigando-o a hipotecar a sua casa de Petrópolis.

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Fernando Jorge é cronista e biógrafo