Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Carinho em público. Corpos na hora do jantar

O Fantástico voltou a exibir o quadro Vai fazer o quê?, definido pelo programa como uma “série que desafia as pessoas a tomarem uma decisão urgente diante de uma situação polêmica”, como bad boys roubando marmita de mendigo.

Na reestreia, em 31 de agosto, a personagem principal foi Amora, uma cadela que a emissora apresentou como “quase atriz” porque “já fez novelas e comerciais”: sob supervisão da adestradora, a cachorrinha foi puxada pelas patas, amarrada a um poste da orla carioca e passou a ser xingada por um ator. A cena irritou homens e mulheres que passavam pelo local. Sem saber que estavam sendo filmados, muitos saíram em defesa de Amora, chegando a querer levá-la para casa e até a agredir o falso dono. A pergunta que surge é: por que essas atitudes não se repetem com todos os animais?

O filósofo australiano Peter Singer diz que há “incoerência” entre quem ajuda cachorros de rua, importa-se com passarinhos em gaiolas, reprime a caça de baleias, se emociona com o instinto materno de leoas e afins e continua matando outras espécies para comer. “É impossível ser coerente em nossa preocupação com os animais não-humanos e continuar comendo-os no jantar”, diz ele em Libertação animal, uma espécie de Bíblia para os defensores dos animais.

Singer defende que a população mundial torne-se vegetariana para “acabar com a matança” e a imposição de “sofrimento a animais não-humanos” e para proteger a natureza – ao longo da vida, estima ele, um boi de 500 quilos bebe água suficiente para fazer flutuar um navio destroier.

Preconceito de espécies

No livro, publicado pela primeira vez em 1975, o australiano critica o que classifica de especismo, uma espécie de preconceito entre raças, algo similar ao racismo e ao sexismo – o autor entende que não deveria haver diferenças entre animais humanos e animais não-humanos, assim como não deveria existir diferença entre brancos e negros e pessoas hetero e homossexuais. Ele argumenta que a capacidade de sofrer e de sentir prazer “confere a um ser o direito à igual consideração”. “Uma pedra não sofre porque nada que lhe possamos fazer fará qualquer diferença para o seu bem-estar. Mas um camundongo tem interesse em não ser chutado na estrada, pois se isso acontecer, sofrerá.”

Singer diz que as atitudes contra o bem-estar dos animais vêm da antiguidade grega, e que o “cristianismo deixou os não-humanos fora do âmbito da compaixão” – em Gênesis, 1,26, lê-se: “Também disse Deus: façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra.”

Para o australiano, “apenas mediante o rompimento radical com mais de 2 mil anos de pensamento ocidental relativo aos animais poderemos construir uma base sólida para a extinção dessa exploração”. Ele finaliza o livro afirmando que “os animais são incapazes de exigir sua própria libertação ou de protestar contra as condições com votos, demonstrações ou boicotes” e que os seres humanos devem compreender isso e se prontificar a ajudar.

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Jeferson Bertolini é repórter e doutorando em Ciências Humanas