Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Preconceito no jornalismo

Segundo notícia do site gazetaweb.com (hospedado no portal globo.com) de 24/11/2014, a jornalista Neila Medeiros, que apresenta o jornal Notícias da Manhã, do SBT, teria feito neste telejornal, no instante em que se noticiava o trânsito nas principais rodovias de acesso à capital paulista – em decorrência da volta do feriado da Consciência Negra –, o seguinte comentário: “Hoje é dia de branco, dia de trabalhar.”

Independente do tom com que uma frase como essa seja pronunciado, estamos diante de uma afirmação preconceituosa. Se sugestionada, insinuada ou em tom de piada, não importa, é uma frase preconceituosa; e disparada pela âncora de um telejornal. Infelicidade? Gafe (como sugeriu, num gesto de eufemismo, o próprio site gazetaweb)? Pode até ser, mas se continuarmos relevando esse tipo de prática num país que busca reparar profundas injustiças raciais cometidas num período de exploração humana, não conseguiremos desaculturar a população no que respeita ao racismo latente que, mesmo sem percebermos, alimentamos com expressões do tipo: ah, isso é cultural.

Se aceitarmos perversamente afirmações como essas, podemos então partir do princípio de que, sendo cultural, pode ser mudado. Explico: se ainda está no plano do cultural, significa que é uma elaboração e uma prática humana, e não natural. O que distingue o que está na ordem da cultura e o que está na ordem da natureza é que o primeiro pode ser reinventado. Logo, dizer que afirmações preconceituosas são culturais não implica aceitá-las. Urge em nosso país reinventarmos a cultura que, ora intencional ora involuntariamente, legitima atos de preconceito a ponto de transformá-los em algo natural. Não, definitivamente isso não pode ser elevado à categoria de natural. Se é cultural, como sugerem os acomodados, é porque fomos aculturados ao longo da história; e se fomos aculturados dessa forma, significa que podemos ser aculturados de outra, ou seja, podemos nos reinventar.

Mídialegitima o que deve ser combatido

Sem querer promover o sacrifício público da jornalista citada (não se trata aqui de plantar ódio), é importante enfatizar a esses profissionais da comunicação que, para além do desrespeito à ética jornalística e à Declaração Mundial dos Direitos Humanos, esse tipo de comentário fere também nossa própria Constituição. A lei 7.716, de janeiro de 1989, define por meio do artigo 20 (reeditado em 1997) que se torna crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Ok, sabemos que as leis, por mais que se pretendam objetivas, estão sujeitas a interpretações e arbitrariedades e, portanto, comentários como os da jornalista acabam atenuados. É o modus operandi. Entretanto, para além dos possíveis enquadramentos ou desenquadramentos que possam pesar sobre jornalistas que praticam comentários preconceituosos, devemos pensar também no combate a essa “cultura” que só depõe contra o nosso país e contra a humanidade.

O problema, ou a complexidade a que estamos submetidos, é que um dos principais instrumentos que nos poderiam auxiliar na reinvenção da cultura é justamente a mídia, e dentro dela o jornalismo. Mas o que fazer quando é justamente dela e dele que estão vindo a legitimação da cultura que deve ser combatida?

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Cristiano de Sales é professor de Comunicação Social