Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

‘BBB’, ainda?

Quando o Big Brother Brasil estreou, há 13 anos, muita gente ficou espantada ao fazer duas descobertas: 1) a de que vivemos cercados por idiotas; 2) a de que a maioria deles é capaz de fazer qualquer coisa para subir na escala pública de idiotice.

Não eram descobertas originais, no entanto. O mundo sempre foi assim, e desde seu nascimento a TV deu ração a essa obviedade. O que a Globo importou em 2002, com Silvio Santos antecipando-o na Casa dos Artistas, foi um formato que anunciava um tipo, aí sim, inédito de acesso, o suposto flagra num universo íntimo que nunca havia sido mostrado em escala tão grande.

Longe de mim querer soar esnobe nesta análise. Não haveria motivo: sempre achei o BBB tecnicamente bem editado, e os integrantes têm direito de buscar seu lugar ao sol. Também não entro no mérito sobre a queda de audiência das últimas edições. Há fatores externos na conta, como o aumento de opções à TV aberta. Em números absolutos, o programa continua sendo muito assistido e comentado.

O que dá para discutir é o simbolismo que o BBB carrega, especialmente no meio intelectual. Se, de 2002 para cá, com todas as mudanças tecnológicas e culturais do período, ainda faz sentido enxergá-lo como pior vilão de uma época narcisista e vidrada na privacidade alheia.

Meu palpite é que não. Ao longo de quase uma década e meia, fomos soterrados por uma quantidade infinita de conteúdo análogo ao produzido pela “casa”. Deslumbramento? Manifestações de ignorância assertiva? Discursos sobre a própria honestidade e força interior para superar os desafios que esta vida maravilhosa nos impõe? É o que não falta por aí, das redes sociais ao noticiário, de programas de auditório a outros reality shows.

Filhos do tempo

Do mesmo modo, perguntar se uma câmera ligada por longos períodos pode distorcer o comportamento espontâneo ou ser esquecida, debate que vem do documentário cinematográfico e se tornou comum nos primórdios do BBB, hoje é ocioso.

Ao menos se tiver o programa como réu principal: quantas horas por dia passamos virtualmente em público, ditando regras, fazendo desabafos, brigando ou nos exibindo com intenções políticas, econômicas ou sexuais, numa alternância ou mistura de sinceridade e cálculo? Sabemos o que é viver como um brother. Tudo é campanha por votos, tudo é paredão.

Uma das características da era da interação digital, na qual ninguém se expressa sem ser contestado, é a bem-vinda desconfiança com a autoridade. Isso se reflete na cultura das celebridades. A forma como lidamos com estrelas da TV ou das clínicas de hidrogel é ambígua. Há fascínio, mas também há consumo irônico e repulsa. Duvido que alguém da classe A ou E leve 100% a sério o circo da versão atual – e sem nobreza – da antiga nobreza.

É esse pé atrás que há tempos impede o “BBB” de ser visto como muito mais do que é: um jogo em que a dramaturgia barata (sentimentalismo, personagens esquemáticos) é suavizada por distanciamento autorreferente (vinhetas e quadros satíricos, debates sobre estratégias competitivas) e imprevisibilidade (da pasmaceira às vezes surge um participante com talento/carisma).

Diferenças de gênero à parte, o resultado costuma ser tão inofensivo como o de uma obra de Glória Perez. O processo de ambos, pensando bem, é semelhante: a pretensão de ser um microcosmo do Brasil, da nossa espécie ou sabe-se lá do quê, seja na seleção do elenco, seja nos assuntos tratados, acaba num pacote tedioso por mais que inclua eventuais psicopatas e clones.

Com as fronteiras do que é íntimo diminuídas ano a ano, idem o espaço da sabedoria e do bom senso, há um ponto em que uma emissora como a Globo deixa de ser vanguarda no processo. Sempre haverá alguém com menos a perder explorando a vergonha própria e alheia. Casais fazendo movimentos sob um cobertor não chocam ninguém. Idem as traições e a sordidez. A exceção ao efeito anestésico geral – um ex-militar dizendo que teria matado um menor no Complexo do Alemão, o que é um escândalo em si – pode ser apenas bravata.

Claro que precisamos de assunto para nossos posts e colunas. Todo mundo é filho de seu tempo, ou de Deus, ou de ambos. Mas seguir repetindo a velha crítica sobre o BBB, atribuindo a ele uma influência malévola que não existe mais, é uma espécie paradoxal de preconceito. Aquele que torna maior e mais apocalíptico o objeto que pretende desprezar.

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Michel Laub é jornalista e escritor, colunista da Folha de S.Paulo