Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Mordomo e ex-marido da patroa

Quem assiste à novela “Império” sabia, desde o início, que havia algum mistério entre uma das protagonistas da história, a ricaça Maria Marta, vivida por Lília Cabral, e o seu mordomo, Silviano, interpretado por Othon Bastos.

Aguinaldo Silva distribuiu várias pistas ao longo dos últimos meses, sugerindo que os dois personagens escondiam algo além da relação profissional. Pela diferença de idade entre os atores, 24 anos, suspeitava-se que poderiam ser pai e filha ou tio e sobrinha.

Depois de 160 capítulos, o autor esclareceu o segredo. Optou por uma solução menos óbvia e bem mais rocambolesca: Silviano e Marta foram casados no passado.

O público tinha a informação desde o início de que Marta havia sido abandonada e humilhada pelo primeiro marido. Ao mesmo tempo, o mordomo Silviano sempre se comportou como um admirador e devoto da patroa, chamando-a de “milady” e enchendo-a de mesuras e rapapés.

A decisão de Aguinaldo Silva é aceitável dentro da (falta de) lógica do folhetim, mas causou certo desconforto aos dois atores, especialmente a Bastos. Em entrevista ao site do próprio autor, ele deixou isso claro: “Como não sabia de nada, fui fazendo uma relação delicada, para que as pessoas achassem que eu poderia ser o pai, um parente, da Marta. Ele nunca demonstrou um sentimento de amor entre homem e mulher. Agora não sei como vou agir. Estou na expectativa dos próximos capítulos (risos)”.

Não vou aqui entrar em muitos detalhes sobre o currículo de Othon Bastos –são quase cem filmes e outra centena de trabalhos na televisão, além de participações em dezenas de montagens teatrais.

“Vivências próprias”

O ator que fez o Corisco em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” é um dos mais experientes e talentosos profissionais em atividade no país. Mesmo na pele de um mordomo, personagem anacrônico, mas quase obrigatório em telenovelas brasileiras, vinha sendo um prazer ver Othon Bastos em cena.

Aliás, louvado seja quem escalou um veterano para este papel –os atores mais velhos raramente têm boas oportunidades na TV.

Aos 81 anos, Othon Bastos criou um mordomo que fugia aos clichês consagrados –nem excessivamente afetado nem bisbilhoteiro nem autoritário. Agora, ao saber que seu personagem é o primeiro marido da patroa, está justificadamente aturdido.

Num dos poucos livros dedicados a este ofício específico, o ator de televisão, Artur da Távola, pseudônimo de Paulo Alberto Monteiro de Barros (1936-2008), observa: “Na telenovela, o ator começa a criar o personagem com base, apenas, na sinopse, numa conversa com o autor e com o diretor. Ele tem que criá-lo antes de conhecer o todo da obra”.

“Se é difícil para qualquer ator e lhe exige muito talento e intuição, tal prática, por outro lado, permite uma composição nova na história da interpretação: a descoberta gradual do personagem enquanto vai sendo vivido no próprio processo da obra”, continua em “O Ator” (editora Nova Fronteira, 1988, esgotado).

E conclui: “O (bom) ator pode fazer descobertas, vivências próprias, revelações de seu personagem enquanto se desenrola o processo interpretativo”. Agora no papel do mordomo que era marido da patroa, tenho certeza, Othon Bastos vai tirar essa maluquice de letra.

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Mauricio Stycer, da Folha de S.Paulo