Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A negritude ou racismo politicamente correto

Bakhtin, em Problemas da Poética de Dostoiévski, argumenta que este último, Dostoiévski, foi o criador do romance polifônico, donde é possível inferir que, com a narrativa de ficção de Dostoiévski, torna-se potencialmente possível a produção de contos, romances, crônicas, novelas, filmes igualmente polifônicos. Para Bakhtin, uma narrativa é polifônica quando todos seus elementos intrínsecos, autor, narrador, personagens, são plenamente livres, autônomos. É, portanto, polifônica a ficção em que seus personagens não se submetem ao autor ou mesmo a outro personagem: cada um é único, singular e responsável pelos seus atos, como se todos fossem seus próprios autores, num contexto em que a palavra é comum porque todos a tomam para si, enfrentando hierarquias e desigualdades de classe, de gênero, étnica, simbólica ou qualquer outra.


Polifonia significa simplesmente multiplicidade de vozes livres. Na narrativa polifônica essas vozes inscrevem pontos de vista distintos, tal que uma voz, a de uma personagem feminina, por exemplo, jamais aceita se submeter à voz de um personagem machista. É por isso que a narrativa polifônica se define mais pelo dissenso que pelo consenso, porque nela o dissenso não apenas é bem visto, cultivado, necessário, como é o princípio polifônico através do qual uma voz não aceita diminuir-se, apagar-se ou inferiorizar-se diante de qualquer outra. O dissenso polifônico, assim, não aceita hierarquias e busca a palavra comum, que nada mais é que a constituição de um mundo em que todos sejam plenamente iguais, livres, autônomos.


Diferentemente da narrativa polifônica, por sua vez, a monológica é aquela em que uma verdade pré-existente ou hierarquias econômicas, simbólicas, étnicas, linguísticas, de gênero abolem ou combatem todo e qualquer tipo de dissenso, taxando-o de antemão como ignorância, ingratidão, incompreensão, ressentimento, mal-humorado, estúpido, terrorista, errado, falso, injusto, criminoso.


O cenário do monologismo


Uma sociedade realmente democrática só é possível se for polifônica, logo se cultiva e valoriza o dissenso, pois entende-se que apenas através do dissenso livre e democrático é possível reparar injustiças e produzir a abertura sem fim da liberdade de expressão e de ação de suas diferentes vozes culturais, econômicas, étnicas, de gênero, num contexto em que o sujeito é tanto mais livre quanto mais produz seus próprios dissensos, inclusive em relação a si mesmo, ao mesmo tempo que reconhece, respeita e incentiva o dissenso alheio, pois sabe que dissenso – e não o consenso – é o caminho da verdadeira justiça e liberdade, além de ser, por consequência, o cenário ideal para a invenção sem fim de uma sociedade segura de si e, portanto, coletivamente feliz, na qual todos terão oportunidades e serão permanentemente incentivados a realizar todas as suas potencialidades criativas, corporais, intelectuais, tal que a felicidade de um só será possível no horizonte da felicidade de todos os outros diferentes de si.


É, por isso, ‘chover no molhado’ a constatação de que não vivemos numa sociedade democrática, nem no Brasil e muito menos nos Estados Unidos ou nos países europeus, porque em todas essas sociedades o dissenso é caçado, humilhado, vilipendiado, criminalizado ou, na melhor das hipóteses – que não deixa de ser a pior – é confinado ou experimentado em guetos de algum departamento universitário ou de algum reduzido grupo ou tribo de artistas ou militantes políticos.


Não é possível, portanto, democracia para valer no interior de uma sociedade capitalista na qual e através da qual é o poder econômico que monologicamente, como verdade constituída, impõe todos os parâmetros de convívio, inviabilizando e desqualificando, quando não persegue ou elimina, todo dissenso que propõe ou expressa outros modelos de sociedade. Não existe possibilidade de democracia numa civilização em que a única liberdade possível é a homogênea e monológica – porque objetiva sempre o lucro – circulação global de reificadas mercadorias, tanto mais monológicas quanto mais estão implicadas com a farsa de que é livre e feliz quem as possui, pois pode, possuindo-as, exibir-se e humilhar aqueles outros que não as possui.


Eis aí o extremo e fascista cenário do monologismo: a nossa civilização, tanto mais monológica e fascista, quanto mais hipocritamente impõe e acredita religiosamente na sua própria farsa: a liberdade unidimensional da circulação global de endeusadas mercadorias como o despótico e consensual modelo que divide o mundo em duas metades, a daqueles que possuem as reificadas mercadorias, os monológicos felizes; e a daqueles que não as possuem, os monológicos infelizes


Eta vida besta, diria o poeta!


Só tem voz quem tem dinheiro


Numa civilização em que é o dinheiro que manda e é apenas o obtendo e concentrando-o que o sujeito se torna ‘livre’ para comprar, e não para produzir dissensos, mas suprimi-los, não é possível democracia. É por isso que a polifonia é impossível na televisão, seja aberta, seja paga, pela simples razão de que, no atual modelo, o controle do espectro radioelétricos é oligopolizado e seus donos, por consequência, tem o poder de demitir e previamente censurar toda e qualquer voz marcada pela potência do dissenso.


Sem a potência do dissenso, portanto, não existe liberdade de expressão, assim como não existe a possibilidade de produção e de exibição de novelas e filmes polifônicos, razão pela qual, sem medo de errar, os filmes e novelas produzidos e transmitidos por nossas tevês nunca serão plenamente polifônicos. Eis porque, tendo em vista os argumentos explicitados, é possível objetivar a seguinte premissa: a televisão oligopolizada mundialmente só produz narrativas e notícias monológicas ou, para enganar tolos, falsamente polifônicas.


Consideremos, a respeito, o personagem André, representado pelo ator Lázaro Ramos, na atual novela das 9, Insensato Coração, da TV Globo, novela de Gilberto Braga e Ricardo Linhares. Aparentemente, André seria um típico personagem polifônico porque inscreve ou inscreveria seu ponto de vista negro, autônomo e livre, sem se submeter a nenhum outro personagem da trama – a branco algum, bem entendido. Tendo em vista a suposta ousadia e autonomia de André, como personagem negro, seria possível analisá-lo, via Bakhtin, como um personagem polifônico e, por extensão, seria possível igualmente argumentar que a novela Insensato Coração constitui ou constituiria um exemplo típico de polifonia na narrativa ficcional brasileira.


Ledo engano. André não é um personagem negro polifônico da teledramaturgia brasileira porque seu potencial ponto de vista de dissenso étnico, em relação ao padrão branco, está tomado – para não dizer rendido ou calado – por duas premissas ou preconceitos ou clichês tipicamente monológicos, as quais simultaneamente determinam monologicamente o perfil do personagem: a premissa ou estereótipo de que a diferença negra por excelência é sexual e a premissa ou estereótipo de que só tem voz, logo o direito de autonomia expressiva, quem for bem-sucedido economicamente.


Só tem voz quem tem dinheiro.


Inclusão negra só ocorre a serviço da exclusão


André, portanto, é um personagem duplamente monológico porque seu perfil ‘autônomo’ é sustentado ou garantido por dois suportes hierárquicos: 1) o suporte hierárquico fálico da virilidade sexual dos homens negros – na verdade um suporte produzido para ser sexualmente hierárquico, motivo pelo qual é, na verdade, uma forma de reduzir a potência expressiva negra, fixando-a e animalizando-a no campo do baixo-ventre sexual – diminuindo-a e submetendo-a, portanto; 2) o suporte ou verdade hierárquica de que o dinheiro, a sua posse, é a condição prévia de toda e qualquer liberdade, sem a qual não é possível a produção de dissenso, embora sabemos que o dinheiro jamais produz verdadeiros dissensos, posto que a sua verdade é a do despótico e monológico consenso da aceitação subserviente – logo não livre e nem autônoma da concentração hierárquica da riqueza comum.


Uma voz polifônica, para ser polifônica, conecta-se com outras vozes de dissenso, tal que uma voz de dissenso negro se inscreve, complementa e aumenta solidariamente a voz de dissenso feminino, que, em conjunto ou coral polifônico, incorpora e se inscreve cooperativamente na voz de dissenso da pobreza, a qual, por sua vez, intensifica a voz de dissenso homoerótico e assim sucessivamente.


Uma narrativa polifônica é, assim, um coral de vozes em contraponto de dissensos livres, autônomos, solidários e implicados cooperativamente com a constituição da palavra comum, que é a palavra da justiça aos povos, que é a palavra livre entre livres, porque entre iguais, em ato e potência. É evidente que a voz do personagem André, em Insensato Coração, não é aquela que produz ou intensifica o dissenso cooperativo a inscrever-se, ainda que sob o signo do conflito, na palavra comum. Pelo contrário, é a monológica voz do privilégio de classe e do clichê da virilidade sexual do homem negro. É, portanto, voz de e para a exclusividade.


Como uma mercadoria, é a voz publicitária, de valores agregados, fálicos e econômicos. Dai sua circulação televisiva necessariamente monológica, porque existe para sedimentar consensos antidemocráticos e hipócritas, como o consenso de que a inclusão negra só pode ocorrer se aceita abandonar sua potência de dissenso e, por consequência, se estiver a serviço, duplamente, do privilégio de classe e de sua autopromoção publicitária, a de que os ricos são politicamente corretos, sem preconceitos – e por isso são merecidamente ricos, porque são ‘gente boa’.


Monologicamente, a inclusão negra na teledramaturgia do patronato, só ocorre se estiver a serviço da exclusão, inclusive da maioria negra.


Só ocorre, enfim, se embranquecer.

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Poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo