Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A TV a cabo da Rocinha

Sexta-feira, 7 de maio de 2004. A equipe da TV ROC recebe a pauta do dia. O destaque é a inauguração de uma escolinha chamada Brisa Rio. Trata-se de uma garagem recém-transformada em escola, localizada em frente a um pequeno campo de futebol invadido pelo lixo, numa das áreas mais carentes da Favela da Rocinha, a Dionéia, no Rio de Janeiro. Cerca de 20 crianças de várias idades e a professora Vívian, que aparenta bem menos que os seus 21 anos, estão ansiosos para se tornarem os protagonistas de uma matéria de TV.

Enquanto isso, na Estrada da Gávea, trecho conhecido pelos moradores como ‘a beira do asfalto’, a repórter Paula Gomes coloca um pedacinho de papel no bolso com o texto que, diante da falta de um computador, escreveu a mão. Paula sobe na garupa de uma ‘mototáxi’, meio de transporte muito popular na Rocinha, e segue para a locação da reportagem. Seguindo a repórter, vai uma outra ‘mototáxi’ com o editor Josivaldo, que também funciona como operador de câmera. Subir de moto as íngremes ladeiras e os estreitos becos da Rocinha é um desafio às leis da gravidade. Mas o que assusta mesmo é o estilo ‘saia-de-baixo-que-eu-sou-bem-maior-que-você’ de conduzir dos motoristas de ônibus.

TV a cabo para todos

A TV ROC começou assim, num verdadeiro desafio às leis de um mercado no qual, assim como os ônibus fazem com as motos, os grandes e poderosos empurram os pequenos e fracos para o canto.

Era o final de 1996 quando o empresário argentino Dante Quinterno decidiu levar adiante uma idéia inovadora: instalar uma TV a cabo na Rocinha, a maior e mais populosa favela do Rio. Inovadora porque a TV ROC ia de encontro ao pensamento vigente de que favela é lugar de pobre e de que pobre não pode se dar ao luxo de ter TV a cabo.

O fato é que Quinterno viu na Rocinha uma mina de ouro. ‘Sempre pensei que a TV a cabo poderia ser direcionada a todos os públicos: as classes A e B, mas também as classes C, D e E’, afirma. ‘Nosso desafio era demonstrar que havia muitos consumidores em potencial dentro das classes econômicas mais baixas. Estes consumidores também queriam estar conectados ao mundo. Eles queriam saber mais sobre a diversidade de línguas e canais que existem no mundo. O mundo não termina nas esquinas da Rocinha. A mente é o limite.’

Segundo Quinterno, a TV ROC seria uma tentativa de ‘unir marketing às ações sociais’, oferecendo à comunidade da favela informações que ela não poderia obter através da grande mídia, que está muito mais interessada em cobrir a violência e o tráfico de drogas.

Essa soma de marketing com ações sociais resultou numa equação irresistível para a mídia nacional e internacional. Matérias sobre a TV ROC já foram veiculadas pelo jornal O Globo, pela BBC, pela revista IstoÉ e pela TV Cultura, entre outros. O marketing é (muito bem) representado pela operação dos canais a cabo. A TV ROC obtém da NET Brasil um pacote que inclui canais como Cartoon Network, Discovery, Fox e, da NET Rio, a licença para transmiti-los. Para ter acesso à essa programação diversificada, os moradores da Rocinha pagam uma assinatura mensal de 25 reais, bem abaixo do valor pago por uma família de classe média. Segundo o site da NET, no Rio de Janeiro o pacote mais barato pode ser adquirido por 78,90 reais mensais.

Importante notar que a TV ROC tem parceria com o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), e o não-pagamento da assinatura resulta na suspensão do serviço. Quanto ao número de domicílios assinantes, a gerente da TV ROC Rosângela Quarelli afirma: ‘Não tem como precisar. A gente trabalha naquele esquema: todo mês entra um monte de assinatura, e todo mês tem um número de inadimplentes que não pagam e a gente corta. Então a gente tem uma oscilação muito grande. Em época, por exemplo, de verão, a Rocinha está lotada porque todo mundo vem para cá do Nordeste para trabalhar. Aí quando passa o carnaval, baixa a temporada, todo mundo vai embora. Então a gente tem esses altos e baixos’.

A TV ROC não é a Globo

Por meio da renda obtida pelas assinaturas, a TV ROC pode levar adiante suas ações sociais mantendo um canal comunitário, o Canal 30, que é oferecido em sua grade de programação. A idéia é abrir um espaçpco para as pessoas da comunidade tratarem de assuntos que julguem relevantes e que geralmente se encontram fora do foco da grande mídia. Aliás, caso alguém esteja associando o nome ROC ao gênero musical, vale lembrar que TV ROC cobre temas que passam longe do lema ‘sexo, drogas e rock n’roll’, principalmente das ‘drogas’.

Segundo a estagiária Paula Gomes, a TV ROC sempre quer destacar os aspectos positivos da Rocinha e, por isso, ganhou o respeito dos moradores. ‘As pessoas têm muito carinho pela TV ROC porque elas sabem que a TV ROC não é a Globo. A Globo só vem aqui uma vez ou outra quando a notícia tem a ver com o tráfico, quando tem tiro e morre uma pessoa. A TV ROC, não. Está aqui todos os dias, está aqui para cobrir um evento que é só da comunidade e que jamais chamaria a atenção dos jornais ou das tevês.’

A idéia de uma emissora de TV da Rocinha, com programação feita pela e para a comunidade é, sem dúvida, bem-intencionada. No entanto, após nove anos de funcionamento, de que maneiras a TV ROC beneficia os moradores da Rocinha? Até que ponto a emissora se mantém fiel ao seu ideal de ‘democratização da informação’ abrindo um fórum de debate que atenda às necessidades da comunidade?

Uma ponte entre a favela e o asfalto

O primeiro aspecto diz respeito ao interesse que a TV comunitária tem despertado em setores das classes média e média alta. A maioria dos estagiários que fazem parte da equipe que trabalha no canal comunitário (Canal 30) vem de universidades cariocas particulares como a Facha e a PUC. De acordo com Dante Quinterno, diretor da TV ROC, essa seria uma tentativa de promover uma ‘ponte entre a favela e o asfalto’, colocando estudantes de classe média em contato com a realidade de uma favela.

Rosângela Quarelli complementa a explicação do diretor: ‘Tivemos a idéia de trabalhar com estagiários e ao, mesmo tempo, fazer um intercâmbio, fazer com que esses estagiários que vêm de grandes universidades mudem o conceito de que favela é uma coisa impenetrável, onde só mora bandido’ diz. ‘A gente queria trazer esse pessoal para dentro, para que no futuro, quando eles forem grandes jornalistas e tiverem que dar uma notícia de uma favela, atuem de uma maneira mais consciente.’

A estagiária Priscila de Matos confirma ter mudado de atitude e pensamento com relação à favela. ‘Antes de vir, confesso que eu tinha medo, até porque a gente só conhece aquela Rocinha que passa na TV, porque a televisão faz um sensacionalismo muito grande em cima do que se passa. Mas eu cheguei aqui, perdi o medo na hora, já fui logo fazer uma matéria lá em cima, achei legal pra caramba. E o pessoal daqui é muito hospitaleiro, te trata muito melhor que na Zona Sul.’

Paula Gomes relata o medo que sentiu ao trabalhar na Rocinha logo após a guerra do tráfico ocorrida na Semana Santa de 2004. ‘Eu pensei: não quero mais ir, eu tenho medo. Mas todo mundo tem medo. Não quero ter medo e me trancar em casa, quero ter medo e fazer alguma coisa pelo meu medo e pelo medo das outras pessoas também’, afirma. ‘Acho que a TV ROC ajuda a desmistificar esse medo. Muita gente de fora vem aqui, gente de universidade, vem trabalhar aqui. Eles vêem que é possível fazer um trabalho legal e vêem também que esse medo tem limte, que não é bem assim. É bom para a própria comunidade, mostrando para eles que a vida deles não é só esse medo, que eles produzem coisas boas, produzem cultura e arte, praticam esportes. Enfim, eles têm uma vida normal, dentro dos padrões deles.’

Alguns moradores da comunidade, no entanto, mostram-se mais céticos com relação a essa ‘ponte entre a favela e o asfalto’. Selma tem 23 anos e trabalha como assistente de cabeleireira em um salão de beleza em Botafogo. Quando ‘tinha tempo de ficar em casa assistindo a TV’, ela costumava sintonizar no Canal 30 para ver suas amigas Michelle e Luciana, que faziam reportagens para a TV ROC. ‘A TV ROC é uma empresa, né? Está ali para vender assinatura e render dinheiro. Não sei o quanto eles ajudam a comunidade. Talvez a TV ROC pudesse se expandir, sair da Rocinha e ser exibida em outros lugares’, diz. ‘Esse canal comunitário seria mais útil se ele pudesse passar fora da Rocinha. Mostrar a arte, o teatro, as festas e todas as coisas boas que acontecem lá para as pessoas que não moram na Rocinha, porque as pessoas da Rocinha já conhecem essas coisas.’

TV Comunitária e transformação social

Seriam realistas as expectativas de Selma? Afinal, a TV comunitária teria mesmo algum poder de contribuir para combater o irraigado preconceito contra a favela, reduzir as desigualdades sociais que separam a favela do asfalto ou até mesmo as desigualdades sociais que existem dentro da própria Rocinha?

A gerente Rosangela Quarelli acredita que a TV ROC ajuda a dar mais mobilidade social aos moradores da Rocinha. O benefício mais imediato é a geração de empregos. A empresa tem 28 funcionários, sendo 10 moradores da Rocinha. Além disso, trabalhar no canal comunitário pode servir como porta de entrada para uma carreira em jornalismo. Araújo, que faz um trabalho voluntário como câmera do Canal 30, explica como essa experiência poderá ajudá-lo em seus planos profissionais. ‘No momento, estou fazendo um curso de câmera no Senac. Trabalhar aqui é o primeiro passo’, diz. ‘Posso ganhar alguma experiência sem ter que lidar com a pressão de um canal comercial. Mais tarde, tenho intenção de tentar arranjar um emprego numa estação de TV maior.’

Quais são os requisitos para um membro da comunidade que queira trabalhar ou envolver-se na produção dos programas exibidos pelo canal comunitário? Rosângela afirma que o Canal 30 está aberto para qualquer morador da Rocinha e explica o processo pelo qual passam os moradores que produzem programas para o canal: ‘Eles vêm para cá e falam: puxa, eu tinha vontade de ter um programa, eu tenho uma filmadora. A gente sempre ajuda porque eles estão começando. Depois de um mês, por exemplo, eles começam a buscar patrocínio. Conseguindo patrocínio, a TV ROC não faz mais edição. Aí já cria aquele círculo de gerar emprego na Rocinha. Porque na Rocinha existem muitas pessoas que filmam batizado, essas coisas, que têm ilha de edição. Então isso já gera trabalhos para eles. Eles começam a caminhar com as próprias pernas’.

Os ‘patrocinadores’ a quem a gerente se refere são donos de estabelecimentos locais como restaurantes, bares, copiadoras, locadoras de filmes, produtores de festas etc. Em troca de apoio financeiro, quando estão na frente das câmeras, os integrantes da comunidade que têm programas no Canal 30 ‘dizem um alô’ ou ‘mandam um abraço’ para seus patronicadores. É o que eles chamam de ‘propaganda informal’. A idéia é que, depois de um tempo, o programa e seus realizadores fiquem financeiramente independentes.

Serviços de utilidade pública

William DJ é o atual presidente da União Pró-Melhoramento dos Moradores da Rocinha (UPMMR), a mais antiga associação de moradores da favela. William foi um dos apresentadores de um popular programa de variedades, o Rocinha na TV. Apesar do sucesso do programa, William revela não ter ganho muito dinheiro com a sua carreira televisiva. ‘Normalmente, quando as pessoas fazem programa, é com a intenção de ganhar dinheiro. Eu não consegui ganhar dinheiro, ao contrário, gastei muito porque eu não tinha tempo para correr atrás de comercial.’

Mesmo gerando emprego e dando a algumas dezenas de moradores a oportunidade de realizar programas para o Canal 30, a esfera de alcance da TV ROC como agente de transformação social é limitada. Alguns moradores acham que a TV ROC poderia até mesmo contribuir para aumentar as desigualdades sociais que existem dentro da Rocinha, dando maior atenção aos líderes de opinião da comunidade, aos que são considerados os ‘privilegiados da favela’ e aos que moram na ‘beira do asfalto’. Mas isso já era de se esperar se se levar em conta a população de mais de 120 mil habitantes da Rocinha.

Por outro lado, muitos moradores afirmam já ter se beneficiado da informação que lhes é transmitida pelo canal comunitário da TV ROC. Eliezer de Oliveira, ou Li da Cachopa, é conhecido na comunidade como ‘ING’, ou ‘Indivíduo Não-Governamental’, pelo trabalho comunitário que realiza há dez anos e hoje abrange uma rádio comunitária, um centro de informática e atividades no fim de semana com as crianças de sua área. Li descreve as razões pelas quais gosta do Canal 30:

‘Eu assisto o canal comunitário porque ele mostra muitas coisas que me interessam. Ter a TV ROC é como ter uma chave da comunidade. Se um morador tem a TV ROC em casa, isso significa que ele sabe de tudo o que está acontecendo. Se vai ter algum encontro importante da associação de moradores, por exemplo, eles mostram. Se vai ter algum curso, se algum empregador precisa de mão-de-obra. Aí o povo vai lá na TV, preenche as fichas. Se vai ter vacinação ou distribuição de leite pras crianças, a TV avisa’.

Ainda se exige muito esforço para descobrir como a mídia comunitária poderia contribuir para a transformação social de uma maneira mais concreta. Enquanto isso, vale a pena lembrar que o que a mídia comunitária sabe fazer melhor está bem debaixo dos nossos narizes. De acordo com Tião Santos, coordenador da Rádio Viva Rio, ‘fizeram uma pesquisa sobre mídia comunitária e uma das perguntas era: por que você ouve rádio ou assiste a TV comunitária? E a resposta de maior percentual foi: porque ela fala coisas do meu interesse, ela fala coisas da minha comunidade. Isso mostra que quanto mais o veículo se aproxima do cotidianos das pessoas, mais ela vai ter audiência’.

O canal 30 da TV ROC parece levar esse princípio a sério. Mostra desde reuniões das associações de moradores até shows de forró. Está presente em inaugurações de escolas, aniversários e batizados. Exibe caracteres informando sobre documentos e cachorros perdidos. E até mesmo divulga mensagens de marido pedindo perdão à mulher.

A TV Comunitária como um espelho

Além de ser útil em questões do dia-a-dia de quem vive na Rocinha, o canal comunitário sabe muito bem como levantar a auto-estima do seu público. Em vez de fingir que a favela é invisível, o canal faz uma panorâmica nos morros. Suas câmaras dão um close nas casas, com suas lajes a serem construídas e seus varais de roupas. Também trata como celebridade (mesmo que sejam só cinco os minutos de fama) quem está mais acostumado a ser tratado como marginal.

O morador Rodrigo Carvalho ilustra bem esse conceito de TV comunitária como um espelho. ‘O Canal 30 é legal porque em vez de assistir novela, que é fictícia, as pessoas começam a prestar mais atenção nos seus próprios vizinhos. Acho que isso até ajuda a gente a ver o que tem de bom na nossa comunidade. Quem a gente vê na tela é o nosso vizinho, em vez de algum artista da Globo.’

Assim voltamos ao início deste artigo e aos protagonistas da reportagem sobre a inauguração da escolinha Brisa Rio. As crianças não têm os cabelos louros nem os olhos azuis das crianças das novela das 8. Elas também não têm aquelas respostas prontas de criança de novela, tão inteligentes quanto chatas. Diante das câmeras, algumas fazem palhaçadas, outras escondem o rosto. E quanto a Vívian, aquela professorinha da reportagem?

Algumas pessoas transformaram o mundo com uma grande descoberta científica e viraram notícia. Outras, menos nobres, transformaram a sua vida pessoal num grande circo de fofocas e viraram notícia. Por que não garantir um espaço para essa jovem mulher que, lá no alto da Dionéia, transformou uma garagem numa escolinha?

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Professora do Departamento de Espanhol e Português da Universidade da Califórnia, em Berkeley