Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A TV não é boa babá

Este é o estranho título de um documentário produzido peloPanorama, da BBC. Trata-se do mais antigo, e provavelmente o melhor, programa de jornalismo investigativo da TV mundial (ver aqui). No ar desde 1953,Panorama se confunde com a própria história da TV. Sempre com temas polêmicos, nessa edição eles foram investigar os efeitos da própria TV nas crianças inglesas. Um programa como este só poderia ser produzido pela BBC. Tinha que ser uma rede de TV pública de verdade para aceitar o desafio de discutir os possíveis malefícios do meio junto à sua audiência mais fiel, dependente e provavelmente mais indefesa: o público infantil.

OPanorama já era um dos meus programas favoritos quando morava na Inglaterra, nos anos 1970 e 80. É bom saber que a série não só sobrevive como ainda faz um excelente jornalismo investigativo na TV. A velha série da BBC prova que ainda existe TV de alta qualidade no mundo.

No Brasil, assisti aoPanorama no canal GNT da Net. Mas você pode ver o documentário na íntegra aqui.

O título original do programa é ‘Is TV bad for my kids?’ ou ‘A TV é ruim para os meus filhos?’ A equipe doPanorama trabalhou em parceria com o professor Barry Gunter, psicólogo da Universidade de Leicester e especialista nos efeitos da mídia sobre o público. Trata-se do mais longo estudo sobre abstinência de TV jamais realizado no Reino Unido. Sem medo de resultados adversos, a equipe doPanorama buscou a cooperação de especialistas das universidades britânicas para estudar os efeitos da TV na sociedade.

Uma ajuda para os pais

Segundo o relatório do ChildWise Monitor Report Winter 2006-2007 (ver aqui), uma instituição independente que estuda os efeitos da mídia, as crianças inglesas assistem a uma média de três horas de TV por dia. E este é um número bastante alto, considerando o tempo que essas crianças passam na escola ou em atividades essenciais, como se deslocando pela cidade, comendo ou dormindo.

Apesar de ter uma das melhores programações de TV no mundo, a sociedade britânica monitora e investiga os efeitos da TV com interesse e seriedade. Não se trata de meros índices de audiência no Ibope ou pesquisa encomendada para garantir empregos e verbas do governo. Boas pesquisas são caras, trabalhosas e devem ser independentes, mas também podem render bons programas de TV.

O tema do documentário da BBC é simples e ousado. Afinal, o que acontece com o comportamento de crianças de 7 a 8 anos de idade de uma mesma turma escolar quando ficam por um período de duas semanas sem TV, computadores e videogames? O documentário cria as condições e analisa os resultados da experiência original. No final, apresenta alternativas para os pais com filhos dependentes de tecnologias tão poderosas.

É muito estranho – especialmente para nós, brasileiros – assistir a um programa que discute a TV dentro da própria TV. Mais estranho ainda para os leitores da minha geração.

Pertenço à ‘geração televisão’. Nasci nos anos 1950 e fui criado em frente à telinha. Meus pais não tinham muitas opções. Família de classe média, quase pobre, pai e mãe trabalhavam o dia inteiro para manter os filhos longe dos perigos do mundo real. A TV era a grande novidade da época. Todos queriam assistir. Mas a TV também era uma grande ajuda para pais que não podiam conviver com seus filhos ou pagar os salários das babás de verdade.

‘Achismo’ de quem pensa saber tudo

A TV do passado era algo parecido com a internet de hoje. Assim como nossos jovens hoje ‘escapam do mundo’ e passam horas na rede, a geração dos anos 1950 ‘viajava’ pelas imagens da TV. Era uma janela aberta para um mundo desconhecido, repleto de novidades e aventuras. Um mundo de muitas promessas e oportunidades, mas também repleto de perigos e ameaças. Aos poucos, a TV se firmava como uma babá eletrônica amiga, mas também poderosa e exigente.

Não sei se foi uma babá boa ou má. Mas a TV me fez companhia durante os longos e árduos anos de infância e juventude. Nunca deixei de gostar e de assistir. Mas, pelo menos, fiz daquela paixão ou vício algo mais positivo. Acabei fazendo, ensinando e pesquisando TV.

Sempre tive curiosidade de conhecer mais sobre o meio que ainda fascina, hipnotiza e infelizmente também ‘vicia’ milhões de espectadores. O problema é que pouco se sabe sobre os verdadeiros efeitos da TV. Principalmente em relação ao público infantil. Temos algumas pesquisas superficiais, muitos índices de audiência e muito, mas muito, ‘achismo’ de quem ‘pensa’ que sabe tudo sobre TV. Não há boas pesquisas aprofundadas sobre os efeitos da TV no Brasil. Poucos conseguem os recursos para sair em campo e pesquisar os efeitos da TV na população.

E foi exatamente isso que a equipe doPanorama da BBC resolveu fazer.

Resultados da pesquisa

Três famílias sem TVs, computadores e games durante duas semanas. Parece pouco, mas quem conhece, sabe o tamanho do problema. Na minha casa, nos anos 1950 e 1960, os únicos grandes problemas familiares surgiam quando a TV quebrava. Pode ser coincidência, mas quando a TV parava de funcionar, começávamos a conversar, discutir e brigar. As conseqüências nem sempre eram positivas. A TV mantinha uma paz familiar frágil e provavelmente artificial. A equipe doPanorama procurou também procurou revelar esses mistérios da TV em casa com as famílias e nas escolas, com colegas e professores.

Logo no início do programa, as crianças inglesas descrevem o poder da TV em suas vidas: ‘Eu não gosto, mas assisto de qualquer maneira. Não consigo desligar a TV’. E os pais acrescentam: ‘A TV acalma as crianças. É como se fosse uma espécie de chupeta’. E, diante do assustador desafio da pesquisa – duas semanas sem TV, computadores e games –, eles indicam os possíveis problemas a serem enfrentados pelas crianças: ‘Eles vão sentir falta’. Sobre os efeitos das novas tecnologias na educação, os professores afirmam: ‘Nossas salas de aula não conseguem competir com os games’.

Os pais também relatam os efeitos da experiência:

‘Todas as crianças sem TV, computadores ou games mudaram. Mas nenhuma mudou para pior. Elas parecem estar mais calmas. As atitudes mudaram. A TV nos controlava! Agora eles parecem ter mais a imaginação.’

‘As crianças estão brincando mais entre si. Fazem os deveres de casa sem problemas. O comportamento melhorou. Não precisam da TV para relaxar. Elas não dormem mais assistindo aos DVDs. Vivem brincando. Vivem uma vida normal.’

Na sala de aula:

‘Tudo mudou’. Apesar do curto período da experiência, os professores perceberam o aumento de interesse e concentração de algumas das crianças do grupo pesquisado. E após a pesquisa, em reunião com os pais, as mudanças são discutidas:

‘Agora há regras. As crianças só assistem TV após terem feito os deveres escolares. Na parte da manhã, nos dias da semana, eles só assistem aos jornais’.

‘Retiramos a TV do quarto das crianças’.

‘Creio que o resultado geral da experiência foi muito positivo. Agora temos menos brigas e damos boas risadas na família’.

Enlouquecidas e exaustas

O documentário da BBC teve grande repercussão na sociedade britânica. Gerou fóruns de discussão na internet e provocou reações favoráveis e contrárias dos telespectadores.

Algumas pessoas consideram muito estranho, talvez até mesmo hipócrita, que a TV discuta seus problemas em programas de TV. Mas ainda é indiscutível o poder da TV e das novas tecnologias para controlar as mentes, principalmente das crianças e adolescentes. Essa é uma questão que merece ser ainda mais pensada e discutida no Brasil.

As equipes doPanorama e da Universidade de Leicester também aproveitaram a transmissão do programa para fazer algumas recomendações:

** Pais e filhos se beneficiam da falta da TV, computadores e games;

** As famílias precisam interagir mais com seus filhos;

** Precisam fazer mais coisas com eles. ;

** Os pais precisam dar mais e melhor atenção a seus filhos.

Mas a palavra final e definitiva ficou com as mães que participaram da pesquisa. Disse uma delas:

‘Os resultados foram muito bons. Mas estamos felizes que a experiência vai terminar e as TVs, computadores e games vão voltar. Já estamos enlouquecendo sem a TV. Estamos exaustas!’

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Jornalista, doutor em Ciência da Informação, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro