Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A interatividade como forma de suicídio

A vaca ruma para o brejo e o que faz o vaqueiro? Tenta tirá-la do atoleiro, colocando-a no caminho dos pastos verdejantes? Nada disso, faz o exato contrário. Com estridência e obstinação, tange a criatura para o terreno onde afundará e do qual só sairá – se conseguir sair – com ajuda externa, de algo que a puxe para fora da imobilidade. ‘Mas isso é uma loucura, um contrasenso!’ – dirão os lúcidos. ‘O sujeito vai acabar com o seu ganha-pão!’ Sem dúvida, é isso mesmo, mas quem disse que o vaqueiro é lúcido?

A vaca é a televisão e o brejo, a internet. O vaqueiro são os executivos de TV, que enxergam mal os riscos da concorrência imposta pela nova mídia universal e não sabem aproveitar as oportunidades que a mutação tecnológica pode trazer a seu mercado, com a introdução da TV digital. Diuturnamente, convidam o público consumidor a bandear-se de tela e recorrer à internet para interagir com as emissoras. Confira mais detalhes no nosso site! Entre no nosso site e responda a pesquisa! Acompanhe o chat no nosso site, com o fulano da matéria que você acabou de assistir! Mude de tela, amigo! Mude de canal! É uma nova forma de suicídio, em doses homeopáticas, sem data para finar.

Dia a dia, a internet vai engolindo o poderio da TV e isso já é fenômeno universal, inquestionável. Vejamos apenas o que traz a respeito o noticiário dos últimos dias. Um mar de informações inquietantes, que provavelmente serão menos agudas do que as notícias da semana que vem, como tem acontecido a cada ano desta década.

Redes de relacionamento

O jornal Meio & Mensagem analisa uma pesquisa do IBM Institute for Business Value, feita com consumidores dos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Austrália e Japão. Foram ouvidas pessoas que, na maioria, têm idade entre 18 e 34 anos e renda familiar de até 100 mil dólares anuais, sendo 54% de mulheres e 46% de homens. Para saber quais são os seus hábitos de consumo de informação, especialmente a sua relação com internet e televisão.

Os dados são claros: o tempo gasto na internet compete com o tempo na TV. Sessenta e seis por cento assistem de uma a quatro horas de TV por dia, contra 60% que gastam o mesmo tempo na rede; 19% passam seis horas ou mais por dia usando a internet para interesses pessoais, contra 9% que assistem à TV durante esse mesmo tempo. Não bastasse isso, 23% utilizam serviços de música portátil, como o iTunes; 7% compram assinaturas para receber vídeo nos celulares; e 11% assinam algum conteúdo para recebê-lo em computador pessoal. Ou seja: consumidores de informação estão trocando a TV pelas mídias mais recentes.

Há mais: ‘As tendências do conteúdo online mostram que os consumidores cada vez mais estão contribuindo para web sites de vídeos e redes de relacionamentos sociais’, diz a reportagem do M&M. ‘Deste total, 58% informaram que contribuem pelo reconhecimento da identidade e não pelo ganho financeiro.’ Ou seja: consumidores de informação querem trocar, querem interagir com outras pessoas.

Curioso e estarrecedor

Vejamos agora a Folha de S.Paulo, que informa sobre pesquisa Ibope feita em julho de 2007 com a elite empresarial brasileira: 537 executivos de 381 grandes empresas nacionais, representando cerca de 2/3 do mais alto nível de gerenciamento empresarial do país. Para esses executivos, a confiabilidade da TV aberta, que era de 61% em 2005, caiu para 52% agora. A crença na eficiência da TV como mídia comercial, no mesmo período, caiu de 65% para 49%, enquanto a crença na internet deu um salto espetacular – de 29% para 75%.

A mesma Folha de S.Paulo analisa a claudicante audiência inicial da novela Duas Caras, da TV Globo. Em 2 de outubro, a obra de Aguinaldo Silva teria registrado 35,5 pontos no ibope da Grande São Paulo, obtendo com isso o segundo pior índice de um capítulo de novela nesta década. ‘O que mais intriga é que o produto não perdeu audiência significativa para as TVs concorrentes’, diz o colunista Daniel Castro. ‘Perdeu para o botão off do controle remoto.’ Segundo ele, entre as novelas América e Paraíso Tropical, o ibope da novela das nove da Globo caiu 6,6 pontos, 4 dos quais são de televisores que foram desligados.

Embora descontente com a divulgação medíocre que a Globo estaria fazendo de sua novela, Aguinaldo Silva aponta outros responsáveis pelo infortúnio. ‘O problema não é com a novela, é com a televisão’, julga o autor. ‘Numa terça-feira, o total de ligados em São Paulo foi de 64%, ou seja, 36% dos televisores estavam desligados. As pessoas estão comprando TVs de plasma para deixarem desligadas ou para verem filmes. E ainda tem o Messenger e o Orkut. Agora, até criancinhas estão viciadas em Orkut. O Orkut virou novela, as pessoas escrevem suas próprias histórias.’

Claro está, pois, e por insuspeitas informações e opiniões, que a TV está perdendo público para a internet. Mas o curioso, para não dizer estarrecedor, é ver como os homens que a dirigem estão fortalecendo a mídia que os devora, ao estimularem uma integração entre televisão e internet que jamais será harmônica e equilibrada, e que acabará por levar à diluição da primeira no infinito universo da segunda. Isso enquanto repudiam a ferramenta técnica com a qual a TV poderia competir com a internet, dando a ele a interação social que busca, sem tirá-lo da frente de sua tela. Qual ferramenta? A interatividade.

Atraentes e sedutores

As redes comerciais de TV já definiram o que querem da TV digital, que começará no país em dezembro, pela cidade de São Paulo. Querem a transmissão em alta-definição e a mobilidade/portabilidade. Isto é: querem a máxima excelência em som e imagem para as telas grandes de plasma, que quem não tem deseja ter; com isso, imaginam enfrentar a ameaça do DVD, legal ou pirata. E querem também o acesso universal à TV, a possibilidade de atingir a audiência em qualquer lugar, a qualquer tempo, esteja ela estática ou em movimento; com isso, imaginam ampliar a base da audiência e preservar a posição da TV como principal mídia publicitária, mantendo-a na liderança do fluxo de recursos dos anunciantes.

Os homens da TV comercial não querem saber de multiprogramação, porque acreditam que o desdobramento dos canais existentes em muitos outros, como na TV a cabo, não terá mercado publicitário que os sustente e a tabelas de preço despencarão, pela concorrência predatória. E não se interessam também pela interatividade, porque não se sabe bem como fazê-la, não há modelo de negócio definido para ela, as experiências estrangeiras não são animadoras etc.

Não se animam nem com a interatividade local, aquela que significa enviar ao televisor das pessoas um software que ficará residente ali naquela máquina, com um jogo ou outro aplicativo, para o cidadão interagir sem se comunicar com ninguém. Quanto mais, então, com a interatividade plena, aquela que proporciona a comunicação bidirecional, que permite ao telespectador enviar mensagens ou fazer uploads de conteúdos para a emissora, dialogar efetivamente com ela.

No entanto, o consumidor quer interagir. Quer comentar, quer opinar, quer contribuir. Quer ser protagonista na era da informação multipolar, não quer mais apenas sentar-se e receber informações passivamente. As emissoras de TV, obviamente, conhecem essa tendência e estão atentas a ela. Mas, que alternativa oferecem a esse consumidor?

A de alternar-se entre o televisor e o computador. ‘Assista ao programa e entre no nosso site, para falar com a gente.’ ‘Entre no nosso site e mande seu vídeo.’ Com isso, o telespectador bandeia-se para a internet, onde, como sabemos, ninguém fica parado em apenas um site, por melhor que seja, mas sai navegando ao sabor de apelos e de links infindáveis, atraentes, sedutores. Com o telespectador singrando a internet, caem os índices de audiência na TV e os preços dos comerciais têm de baixar. A TV perde força econômica e poder político.

Santa Clara

Em vez de convidar seu público a dormir com o inimigo, não seria mais lógico investir na interatividade da TV digital? Trabalhar com a indústria eletrônica para que os futuros sintonizadores de TV digital tenham saídas para a rede de telecomunicações, e que os controles-remotos sejam o teclado de interação entre telespectador e emissora?

Permitir ao público, enfim, navegar em ambiente interativo, como deseja, mas ambiente da própria televisão, na mesma tela do televisor, para mantê-lo fiel à sua base de audiência e não empurrá-lo para a tela alheia da internet?

As estratégias de negócio para a TV digital estão se definindo de forma limitada, com a ótica do imediatismo, sem uma reflexão mais profunda sobre as possibilidades que a nova tecnologia traz de novos serviços, novas aplicações – o que equivale a dizer novas receitas, preservando e ampliando o seu público.

A interatividade e a multiprogramação não podem ficar para o Dia de São Nunca. Antes que ele chegue, a vaca já estará chafurdando no brejo e não adiantará nada acender velas para Santa Clara, padroeira da TV. Forças celestiais não vão tirá-la do atoleiro.

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Jornalista