Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A razão de quem é intolerante de coração

‘Não basta a mera exortação para que se julgue com toda a ciência e consciência. É preciso também promulgar instruções de como a ciência pode ser pequena e a consciência, grande’ (Karl Kraus)

‘[…] e a ciência, depois de ter se afastado com pleno sucesso da teologia, da qual por muito tempo fora `serva´, pretende agora, com toda arrogância e incompreensão, ditar leis à filosofia e fazer papel de `senhor´ – que digo? de filósofo mesmo. Minha memória – a memória de um homem de ciência, se me permitem! – está repleta de ingenuidades arrogantes que ouvi de jovens pesquisadores e de velhos médicos, acerca da filosofia e dos filósofos. […] É em especial a visão desses filósofos-de-mixórdia, que se denominam `filósofos da realidade´ ou `positivistas´, que pode suscitar perigosa desconfiança na alma de um jovem aplicado […] – são todos homens derrotados, dominados pela ciência, homens que, outrora, quiseram algo mais sem terem direito a esse mais e à responsabilidade que ele comporta’ (Nietzsche, Além de Bem e Mal, # 204)

‘Homens da ciência! Fala-se muita coisa sobre ela, mas quase sempre sem razão’ (Karl Kraus)

Há muito tempo a imprensa que trata de tópicos relacionados à religião e ciência tem recebido ataques publicados no OI. Esses ataques são sobretudo, e na verdade, ataques maciços, feitos a partir de generalizações, à religião entendida, de maneira essencialista, como fonte da intolerância; em contrapartida, pretende-se elogiar a ciência entendida como fonte da redenção da humanidade. É preciso considerar aspectos dessa formulação essencialista.

A esse respeito, meu artigo publicado no dia 7 de abril argumentou que nessa concepção essencialista há uma elementar generalização sobre formações e práticas religiosas, de modo que seu esquema desconsidera as diferenças entre as pessoas religiosas que são tolerantes e as que são intolerantes. A esse respeito, respondeu-se em artigo (‘Por que não te cala, Sócrates?’, no OI dia 14 de abril): ‘Não faz o menor sentido racional alegar a existência de exceções de religiões diminutas que não sejam (ainda) intolerantes’. Em primeiro lugar, é desnecessário ressaltar que o caráter historicista contido nessa afirmação – sugerindo que todas as religiões ou são intolerantes ou, senão são ainda, necessariamente tornar-se-ão; que todas as pessoas religiosas são intolerantes ou, se ainda não são, deverão se tornar (pelo menos se viverem tempo suficiente para cumprir a profecia historicista) – é ostensivamente irracionalista como todas formulações de caráter historicista.

Diferenças não importam

Além disso, é preciso considerar: diferentemente do que possa parecer, essa resposta não se contrapõe, mas confirma exatamente o que eu disse a propósito de sua formulação. Não há, nessa sua passagem, nenhum reparo à minha descrição de seu esquema. Pelo contrário, ratificou-a.

Estamos de pleno acordo. Eu tinha observado que seu esquema desconsidera as práticas religiosas tolerantes, irrelevando as diferenças entre as formações religiosas que são intolerantes e aquelas que são tolerantes. A resposta dada afirma que é claro que as práticas tolerantes existem, mas que elas não têm qualquer importância: essa resposta explicou que, no seu esquema essencialista, as diferenças existem mas que elas não são irrelevantes. Mas a questão ressaltada no meu artigo é precisamente que essa concepção elimina a importância das diferenças. Dizer que em seu esquema as diferenças, diante das essências, não importam confirma o que eu disse sobre seu esquema.

Esse esquema desconsidera as práticas religiosas tolerantes. Se para ele, elas existem e são irrelevantes, ele as desconsidera. Em seu esquema, que elas existam ou não existam, não importa: elas são irrelevantes. A resposta dada ratificava que sua formulação é precisamente tal qual tinha sido descrita no meu artigo.

Pessoas são irrelevantes

Então, no esquema essencialista que funda esses textos do OI, são irrelevantes as diferenças entre as pessoas religiosas tolerantes e as pessoas religiosas intolerantes. Irracionalista, essa concepção não disfarça seu desprezo: as pessoas religiosas tolerantes são irrelevantes. Nesse sentido, esse esquema critica severamente tratamentos médicos que consideram o aspecto emocional das pessoas doentes, menosprezando as consequências pragmáticas. Ignora, assim, as consequências pragmáticas e considera que as pessoas são irrelevantes diante das essências de critério único de seu esquema dogmático.

Avaliar as diferentes formações religiosas segundo o suposto critério único que definiria a suposta essência da religião acarreta desconsiderar, como irrelevantes, as diferenças. Daí, que pessoas sejam irrelevantes não há sequer meio passo.

Para essa concepção, seu dogmatismo referente à ciência e seu ódio à religião (entendidas respectivamente como fonte redentora da humanidade, não como simples meio, e como fonte da intolerância) são mais importantes que as pessoas e as consequências pragmáticas da vida. Quando alguém se contrapõe à sua concepção essencialista, quem defende essa visão essencialista não contra-argumenta racionalmente, limitando-se a gritar esganiçadamente porque despreza tudo o que não é sua identidade – seu dogmatismo, sua concepção, seu maniqueísmo, sua intolerância, seu desprezo.

O que podem lhe importar as pessoas que não concordam com seu dogmatismo? Pessoas são irrelevantes, é o que se aprende com o sábio socrático, diante da verdade superior das essências.

Intolerância e redenção

Para quem defende esse esquema, pessoas tolerantes são intoleráveis simplesmente porque toleram o que não é a sua identidade. Pessoas religiosas, pessoas tolerantes, analista de TI que não concorda com sua formulação, administrador que se contrapõe a suas ideias, publicitário que discorda de seu esquema, pessoa que estudou filosofia e que contrapõe um modelo nominalista mais aberto que seu esquema fechado, etc., todos aqueles que não fecham com seu dogmatismo são irrelevantes – portanto, é óbvio que sejam menosprezadas, tratadas com desrespeito.

Considerar pessoas irrelevantes, ser intolerante com tudo o que não é sua identidade: isso é que é ter razão segundo essa concepção. É a razão intolerante.

É preciso inverter: o que essa formulação chama ‘razão’ é desrazão. Quando foi dito que eu faço vista grossa para o sobrenatural (no artigo já mencionado do dia 14), quer dizer, na verdade, que eu não faço vista grossa para essa razão intolerante.

Há, nessa concepção, uma clivagem entre o mundo das essências e o mundo das diferenças. De um lado, o mundo perfeito das essências, regido pela ‘razão’ – um mundo superior. De outro lado, o outro mundo, o imperfeito e inferior, habitado por pessoas religiosas, pessoas tolerantes, por analistas de TI e por administradores, por publicitários e jornalistas, por quem estudou filosofia mas ainda assim não apreendeu ‘a razão’, enfim, por todas as pessoas que transigem com o que não é a identidade do rei-médico-filósofo que foi abençoado com o privilegiado acesso ao mundo das essências. Maldita tolerância com as diferenças, com o que é diferente das essências.

Mas não acredite no que diz o essencialista intolerante do OI que despreza as pessoas e é preciso inverter seu esquema: o nosso mundo é o único mundo verdadeiro e essências como ele as formula não existem, o mundo das essências não existe. Mais do que isso: não é racional acreditar na clivagem entre os dois mundos, não é racional acreditar em supostas essências maniqueístas, como a idéia de que religião e a ciência seriam respectivamente fontes da intolerância e da redenção da humanidade. Essa clivagem leva à intolerância e intolerância não é racional.

Critério único

No mundo das essências do intolerante, as diferenças nominalistas entre as pessoas tolerantes e intolerantes não são relevantes; nesse seu mundo, importante é a clivagem dogmática entre religião e ciência entendidas como fonte da intolerância e fonte da redenção da humanidade. Diferentemente, no nosso mundo (que para um essencialista é um mero mundo de diferenças, irrelevantes diante das essências; na verdade, o único mundo que existe, o único que é efetivamente relevante) importa a diferença efetivamente pragmática entre tolerância e intolerância.

No âmbito da tradição filosófica, essencialismo é próprio de Platão, o irracionalista, e do Sócrates personagem criado por aquele (Sócrates que é a projeção do irracionalismo de seu criador). Nada a ver com o racionalismo, o humanismo e a tolerância do Sócrates histórico: esse pregava a racionalidade como meio (incluindo a ponderação, a argumentação, as diferenças e a tolerância), não ‘a razão’ tida como essência. Eram os irracionalistas Platão e seu personagem, feito à imagem do seu criador, que advogavam a existência do mundo das essências. Falar em ‘razão’ como essência é típico de irracionalistas: não é racional.

Um leitor elogiou essa concepção – dizendo que eu tentei (no artigo do dia 7 do mês passado, já mencionado) e não consegui refutar seus esquemas – e sentenciou que a religião cega. Ao contrário: religião e ciência são meios que se empregam: cada uma delas, em si, não leva à tolerância ou à intolerância – tudo depende de como esses meios são utilizados. Não é um meio que cega: são o dogmatismo e a irracionalidade que podem cegar. Não é a religião que cega de intolerância quem se torna homem-bomba a se explodir; é aintolerância do homem-bomba que usa a religião para justificar sua intolerância. É a razão intolerante que cega, de maneira que o intolerante não enxerga o que é relevante: as pessoas. Não se refuta uma modalidade de intolerância pelo mesmo motivo que não se refuta uma doença dos olhos; sabendo disso, não se tenta refutá-la. Dessa concepção, a razão intolerante não provém de uma modalidade de racionalismo: ela é uma modalidade de moralismo, não se restringe aos critérios de racionalidade, mas erige a própria ‘razão’ moralista, intolerante e anti-humanitarista como critério único.

Concepção de ‘ciência’

Em contrapartida, racional então é nos pautarmos em termos tolerantes. É a tolerância – a consideração das diferenças – uma importante chave para escolhermos melhorar o mundo. Usando a ciência – entendida (de maneira nominalista) como meio para o melhoramento dos homens, não como fonte de suposta redenção essencialista da humanidade. Não é racional acreditar na redenção por critério único: isto é intolerante. É fácil falar em nome do mundo perfeito, em nome da redenção completa da humanidade: basta desconsiderar as pessoas e eliminar as diferenças (ou vice-versa).

Em texto anterior, eu escrevi que não defendi nada a não ser a tolerância; talvez não tenha me expressado bem. Tratava-se (e trata-se o tempo todo) de defender a vida: pessoas são relevantes, sim. Não há nada mais, nem tão, relevante do que a vida. Esquema essencialista não é relevante e essências não são fundamentais para a vida. A vida é relevante; pessoas são relevantes. Por isso, a tolerância é importante. Essências não servem para julgar a vida. Quem está no mundo das diferenças não pode avaliar a vida porque é parte interessada. Tudo o que está no mundo das essências também não pode avaliar a vida por outro motivo: não tem nada a ver com a vida.

Assim, da perspectiva intrinsecamente nominalista, prefiram-se as pessoas tolerantes ao invés das pessoas intolerantes. Independente de pretensas essências da religião e da ciência. Pessoas tolerantes são melhores do que aquelas intolerantes. Independente se são pessoas que acreditam ou não numa determinada formação religiosa, em outra formação religiosa ou especificamente na religião do mundo das essências.

Em tempo: em todos os três aforismas antepostos acima em forma de epígrafe, a palavra ‘ciência’ não deve ser entendida de forma realista, como se tratasse das formações, atividades e práticas científicas. Diferentemente, deve ser tida de maneira nominalista, referindo-se assim apenas a uma concepção própria do século 19 que atinge seu paroxismo na doutrina positivista (à qual se refere explicitamente a passagem de Nietzsche, passagem que este artigo soube, acima, indicar onde é encontrada na obra de seu autor) da segunda metade do século 19 e que ainda persiste ao longo do século 20 (como é mostrado pelas passagens de Karl Kraus) e que mesmo no início do século 21 ainda tem alguns epígonos, tal como aparece naqueles artigos publicados pelo OI.

A doçura do Gravatinha

A crença naquele esquema essencialista é uma religião. Como, segundo esse esquema, religião é fonte da intolerância, compreende-se que é uma questão de coerência interna que ele seja tão fortemente intolerante. O que esse esquema diz sobre o que seria a essência da religião (que ela seria fonte da intolerância) não diz nada relevante sobre religiões entendidas de maneira geral, mas diz algo muito relevante sobre sua própria concepção em específico. Quem afirma que religião cega não diz nada sobre religião, mas diz muito sobre tanto sobre sua intolerância quanto sobre sua auto-complacência.

Que essa concepção e seu esquema sejam dogmáticos, maniqueístas, irracionalistas e, enfim, que sejam errados, não é ainda problema. Há uma questão pragmática: o problema está no perigo que existe no grau altíssimo de intolerância e nos caracteres autoritários contidos nessa formulação dogmática e nesse esquema irracionalista.

Não transigir com os perigos da razão intolerante evidentemente não é uma forma de intolerância. Ninguém deve aceitar ser destratado por ter uma ética tolerante ou por discordar que religião e ciência tenham essências segundo uma concepção monolítica. Ninguém deve ser tratado com intransigência, rudeza e desprezo (‘você é somente um publicitário’, ‘se você conseguir aprender um por cento da wikipédia já seria muito para você, administradora’) por não crer no imaginário mundo das essências, por não acreditar no fantasioso mundo do sobrenatural de Bandarra. Por minha vez, eu, como o venerando Nelson Rodrigues, acredito nas traquinices do Sobrenatural de Almeida e prefiro a doçura do finado Gravatinha.

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Bacharel em História e doutor em Filosofia pela FFLCH- USP, Campinas, SP