Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Agência Carta Maior



ÉTICA & JORNALISMO
Bernardo Kucinski

Jornalismo, profissão em extinção, 17/02/06

‘Prezado arqueólogo,

Não sei se você sabe o que é jornalismo. É uma das profissões que hoje estão desaparecendo. Ao jornalista cabe, entre outras funções, relatar os fatos importantes do momento com honestidade e denunciar abusos dos poderosos contra os mais humildes, ou contra o interesse público ou contra a paz entre os povos. É uma profissão que incomoda muito.

Como tenho a certeza de que no seu tempo ela já não existirá, tal a velocidade com que está se extinguindo, quero deixar registrados seus últimos momentos. Mesmo porque, ao contrário das outras profissões que estão morrendo e que devem deixar como rastros as suas ferramentas e utensílios, o jornalismo não deixará nenhum sinal de que existiu, exceto as histórias publicadas em jornais. O jornalismo não deixará ferramentas e utensílios, como provas de que existiu porque ele não se define por uma técnica. Sua técnica é parecida com a de muitas outras ocupações. Ele define-se por uma ética, e ética não é algo material, que deixe pedaços enterrados no chão.

São muitas as profissões que hoje estão desaparecendo. Cada vez mais são as máquinas e os computadores que fazem os objetos. E até planejam desenham, escrevem, programam, organizam e despacham. Tudo automático. E cada vez mais os objetos deixam de ser consertados quando quebram ou desgastam-se, de modo que também as profissões dedicadas ao reparo dos objetos desaparecem, tornam-se tão inúteis quanto os objetos que deveriam restaurar. É o caso do sapateiro. Você sabe o que é um sapateiro? É um artesão que fabrica sapatos, um de cada vez, o do pé direito sempre um pouquinho maior do que o do pé esquerdo, por assim, assimétrica, foi feita a espécie humana. O sapateiro também conserta sapatos. Ainda há hoje, nesse inicio de século XXI os que consertam, mas são cada vez mais raros. Os que fabricam já não há mais, exceto se for para algum caso especial de deformidade. Meu pai foi sapateiro. Por pouco tempo. Abandonou logo, primeiro, porque não levava jeito; depois, deve ter percebido que a profissão não tinha futuro. Hoje, os sapatos são fabricados em série por máquinas, são chamados, a maioria, de tênis, com marcas esquisitas e, logo que se gastam, são jogados no lixo. A maioria nem é de couro, é de borracha ou um plástico que imita o couro.

Outra profissão que desapareceu de vez, de modo fulminante é a do linotipista. Você deve saber que muitos dos revolucionários deste século foram linotipistas, que ficaram espertos e revoltados de tanto ler sobre as iniqüidades de nosso tempo. Espero que nas tuas escavações você tenha topado com os indícios macabros dessas iniqüidades, o holocausto, o massacre em Ruanda, as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki a fome na Etiópia. Os desaparecimentos políticos na América Latina.

Voltando aos linotipistas: eles compunham linhas de tipos de impressão em chumbo. Chumbo quente, fumegante. Tinham que tomar leite para não se envenenaram. Tusso isso sumiu com as composições a frio, com a informática, com a microeletrônica. Sumiu também a datilografa. Você sabia que as pessoas digitavam as letras num teclado de ferro. E que, se errassem uma letra, tinha que começar tudo de novo? Também desapareceram os pestapistas, os paginadores, todos os profissionais que montavam as chapas de impressão. Tudo isso era feito à mão, coisa por coisa, página por página.

O desaparecimento do jornalista está se dando de modo mais sutil, mais imaterial e por processos diversos. Primeiro, uma boa parte deles, em vez de defender o interesse público, dedica-se hoje a melhorar a imagem ou defender objetivos de grandes empresas, de grupos de interesse, governos e políticos. Chamam-se assessores de imprensa. Os mais importantes chamam-se diretores de relações institucionais. Outros jornalistas estão virando uma espécie nova de ficcionista que mistura realidade com imaginação, inventa histórias, usa os personagens do momento para criar enredos imaginário. Ou usa elementos de fatos reais para criar todo um enredo, mais envolvente e dramático. Assim, não precisam investigar nada, nem comprovar, nem ouvir todos os lados envolvidos num episódio para relatá-lo com verossimilhança, muito menos estudar e pesquisar os temas sobre os quais escrevem. Não são escritores, como se poderia pensar, porque não tem estilo, não tem classe. Usam uma linguagem insultuosa e arrogante, adjetivada, rococó, muito distante também da linguagem clássica do jornalismo, que deve ser objetiva e econômica e, na qual, os fatos devem estar adequadamente hierarquizados e contextualizados. Usam muito o humor e sarcasmo, mas sem o talento e a criatividade dos verdadeiros humoristas. Jogam todos esses elementos dispares num meio novo de comunicação chamado Blog, que não se sabe se é uma comunicação pública ou pessoal. E onde tudo pode ser colocado, fatos, mentiras, fofocas, versões, insinuações, ilações e até acusações. No blog nada dura mais do que duas horas. No blog, tudo é efêmero, fugaz. E divertido. É como se fosse uma sessão de cinema. Assim, o jornalismo também virou entretenimento.

Saudações,

Bernardo Kucinski

N.E.: Imagine-se endereçando uma mensagem a um arqueólogo do futuro, fornecendo-lhe dados sobre a realidade atual que lhe servissem de apontamentos para o entendimento de nossos dias. A Agência Carta Maior apresenta espaço dedicado a esta inusitada empreitada, com a publicação mensal de textos de importantes intelectuais, cientistas e artistas endereçados ao Arqueólogo do Futuro.

O texto de estréia foi de Niéde Guidon, arqueóloga. Em seguida, tivemos o de Eduardo Gaelano, pensador e escritor uruguaio. Depois, o de Moacyr Scliar, médico, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, o de Jorge Timossi, vice-presidente do Instituto Cubano do Livro e diretor da Agência Literária Latino-americana, o de Mirian Goldenberg, doutora em Antropologia Social e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o de Maurício de Sousa, o genial criador da Turma da Mônica, o de Emir Sader, sociólogo e professor da UERJ, o do Chico Anysio, humorista, escritor e pintor, o de Ferreira Gullar, poeta, o de Flávio Wolf Aguiar, escritor e professor de Literatura Brasileira da USP, o de Marcio Souza, escritor amazonense, o de Viviane Mosé, filósofa e divulgadora da filosofia, o de Elizabeth Ginway, brasilianista e estudiosa de ficção brasileira, o de Augusto Boal, teatrólogo criador do Teatro do Oprimido, o de Frei Betto, teólogo e escritor, o de Alfredo Bosi, escritor e professor de literatura brasileira, o de Jorge Furtado, cineasta, e o de Bernardo Kucinski, jornalista e professor da ECA-USP.’



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O Estado de S. Paulo – 2

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