Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As raízes da espetacularização da notícia

A política como espetáculo nos meios de comunicação tornou-se rotineira, especialmente quando se trata da televisão. Em momentos mais dramáticos, como os atuais, o problema se agrava. O espaço para a reflexão desaparece e ganham destaque as cenas mais sensacionais como gravações ocultas, bate-boca entre parlamentares, acusações bombásticas emitidas em encenações teatrais e assim por diante.

Há duas explicações básicas para que isso ocorra: o lucro como objetivo único das emissoras comerciais e, em decorrência, a visão da TV como fonte prioritária de entretenimento. Comecemos destrinchando a primeira explicação. No Brasil, diferentemente da maioria dos países europeus, a televisão foi concebida desde a sua origem como um empreedimento comercial, voltado para a obtenção de riquezas. Aqui não se pensou na TV como serviço público, com a responsabilidade social de, em primeiro lugar, se dirigir ao cidadão e dar a ele instrumentos para viver melhor na sociedade.

Seguindo o exemplo do rádio, a televisão brasileira surgiu para – antes e acima de tudo – acelerar o processo de acumulação capitalista com a oferta diária de uma alta dose de bens e serviços. Para dar conta dessa missão ela precisava conquistar a audiência a qualquer preço e ai entra a segunda explicação para a situação atual da TV brasileira e da espetacularização da notícia.

Trata-se da aposta no entretenimento tornado centro de todas as programações em detrimento da informação e da educação. Nos veículos de comunicação impressos – salvo algumas exceções – a notícia é o seu principal produto. Compra-se o jornal ou a revista esperando em primeiro lugar a informação e não a diversão (infelizmente hoje isto está se confundindo também em alguns meios impressos, mas trata-se de uma outra discussão). Na TV, fonte única de informação para a maioria absoluta da população brasileira, o principal produto é o entretenimento e a sua prática contamina todas as demais esferas da programação não deixando escapar nem o jornalismo. Estão aí as raízes da espetacularização das notícias.

O raciocínio é simples: a televisão foi feita para vender e para vender é necessário fazer ofertas ao maior número possível de compradores em potencial. Para tanto é preciso obter grandes audiências que só serão conseguidas com programas espetaculares que surpreendam o telespectador a todo o momento, não permitam que ele reflita sobre o que está vendo, o emocionem em doses equilibradas de alegria e tristeza, não o deixem mudar de canal e, por fim, sem pensar muito, comprem os produtos anunciados.

É assim que funcionam os programas de auditório, as novelas, os shows policialescos do final de tarde e os anúncios comerciais em suas diferentes versões (entre os programas, nos intervalos ou mesmo dentro deles, os chamados merchadisings). Há toda uma lógica para conquistar audiência, mantê-la a qualquer custo e graças a isso empurrar fogões, geladeiras, xampus, cervejas em doses maciças sobre o telespectador.

Reforçar o conservadorismo

A mesma lógica da novela ou do programa de auditório foi incorporada pelo telejornalismo. A novela termina sempre seus blocos – antes do intervalo comercial – com uma cena que aguça a curiosidade do telespectador. Quer que ele fique firme diante da TV e assista comportado todos os anúncios e assim não perca a seqüência ficcional a ser exibida logo depois. O telejornal faz a mesma coisa anunciando sempre, ao final de cada bloco, as notícias mais espetaculares do bloco seguinte, ou ainda as mais espetaculares que só serão dadas ao final do programa. E o telespectador atiçado pela curiosidade engole os longos comerciais de cada intervalo passivamente.

Até uma linguagem específica foi criada pelos telejornais para dar conta dessa missão. Uma tese de doutoramento defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP toca nessa ferida. Ivete Cardoso Roldão, a autora, discorreu com competência sobre ‘A Linguagem Oral no Telejornalismo Brasileiro’. Foi aos manuais de redação, entrevistou telejornalistas e mostrou como vai sendo criado um padrão próprio para o falar televisivo no Brasil, distanciando-se gradativamente de sua origem, o modelo norte-americano.

Ao detectar a busca constante de uma linguagem coloquial que aproxime a fala da TV do universo cultural da maior parte possível dos telespectadores, o trabalho revela a contaminação da notícia pelo espetáculo. A autora cita o sociólogo francês Pierre Bourdieu ao lembrar que ‘nossos apresentadores de jornais televisivos, nossos animadores de debates, nossos comentaristas esportivos tornaram-se pequenos diretores de consciência que se fazem sem ter que forçar muito, os porta-vozes de uma moral tipicamente pequeno-burguesa, que dizem ‘o que se deve pensar’ sobre o que chamam de ‘os problemas da sociedade’, as agressões nos subúrbios ou a violência na escola’. Não é isso que faz toda noite o Jornal da Record, de forma explícita, ou mais sutilmente o Jornal Nacional? Para não se falar do Cidade Alerta e dos seus clones.

Ivete Roldão lembra os repórteres e apresentadores ‘que se destacam na condução de reportagens, muito mais pela presença em cena do que pela qualidade da informação’. Podendo-se acrescentar que ao procederem assim, expõem-se como artistas, encenando um espetáculo em que a notícia é apenas um mote para destilarem preconceito e arrogância.

Salvo raras exceções, a intenção é assustar o telespectador, mostrar que o perigo ronda a sua porta e apresentar a solução mais fácil e rápida – ou seja, mais violência. Essa pobreza de raciocínio vale também para a economia, a política e até para o futebol. Expõem-se um problema e logo é dada a solução, com muita veemência e verborragia. Ao telespectador não é dado o direito de refletir, raciocinar e elaborar a sua própria opinião. Tudo já vem pronto, com o nítido objetivo de reforçar o conservadorismo arraigado em amplas camadas da população. A televisão rouba, dessa forma, o direito à reflexão e a transformação do próprio indivíduo e da sociedade.

Show de horrores

Até aqui essa lógica estava restrita as emissoras e aos seus produtores, artistas e jornalistas contaminados pelo efeito-espetáculo. Na crise atual a contaminação foi mais longe. Parlamentares, não todos mas a maioria, começam a entender a lógica do veículo e passam a adotar os mesmos princípios do jornalismo televisivo: tornam-se atores. Sabem eles que para ter mais destaque, ficar mais tempo no ar e provocar maior repercussão devem se comportar como a TV quer, com arroubos teatrais, atritos espetaculares com seus colegas, denúncias escabrosas. Alguns se dão bem dentre desse figurino e o exemplo melhor foi dado por Roberto Jefferson. Outras caem no ridículo absoluto, e os exemplos são vários.

Essa é a grande novidade desta crise. O efeito televisão sobre a política.

O círculo vai se fechando. A TV depois de impor suas regras à atividade política fazendo com que certos pronunciamentos e decisões sejam tomados a tempo de serem veiculados ou não pelo Jornal Nacional dá um novo passo e transforma políticos em atores. Se para estes a oportunidade de aparecer é eleitoralmente lucrativa, para a TV é mais uma forma de conquistar audiência ou, dito de forma clara, lucro. E assim a televisão comercial incorpora à sua prática novos atores, usados para o mesmo fim.

Cabe, no entanto, uma ressalva. As televisões legislativas (TVs Câmara e Senado) operam sob outra lógica, a do serviço público. E assim ao transmitirem ao vivo e sem maiores interrupções as sessões do Congresso (plenárias ou de CPIs) colocam a nu todo o que foi dito aqui. Sem os cortes e as edições utilizados pelos telejornais das redes comerciais o sensacional se alterna com o banal, com intervenções destituídas de sentidos, com debates sobre normas regimentais e outros assuntos que escapam à lógica da espetacularização.

Ali está a verdade nua e crua da atuação dos parlamentares, para o bem e para o mal. Essas transmissões ao não privilegiarem o espetáculo favorecem a reflexão e contribuem para uma aproximação maior entre o cidadão e a política parlamentar. É uma contribuição importante para o aperfeiçoamento da democracia. Pena que fique restrita a minoria que tem recursos para assinar um canal fechado de televisão ou tenha algum tipo de acesso a eles através de antenas parabólicas. Repete-se com a TV o apartheid social brasileiro. Quem pode e tem outras fontes de informação tem também acesso a essa televisão menos espetacular, para os demais – a grande maioria dos brasileiros – a política continua sendo mostrada como mais um show de horrores.

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Sociólogo e jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP