Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Avanços, incertezas e contradições

Durante a 59ª reunião ordinária do Grupo Gestor do Sistema Brasileiro de TV Digital, ocorrida em 29 de junho, foi apresentado um esboço do plano de comunicação para o SBTVD. O objetivo é padronizar a circulação de informações entre os próprios participantes do projeto, assim como destes com o governo, e iniciar a divulgação do sistema para a sociedade.


Apesar de tardia, a iniciativa, após muitos ruídos e muitas críticas devido à falta de comunicação e de informação, ainda é válida para esclarecer principalmente a sociedade dos objetivos do SBTVD e de seu alcance. Até o momento, muitas críticas têm sido feitas ao processo por puro desconhecimento dos rumos e dos objetivos atrelados à transição da televisão analógica para um modelo digital. É comum ver pessoas discorrendo sobre as conseqüências da implantação de um sistema brasileiro sem considerar que o SBTVD não necessariamente teria impacto no desenvolvimento de um padrão novo, ou na reinvenção da roda, como preferem dizer alguns ainda mais desavisados.


É claro que não podemos generalizar e afirmar que todas as críticas são baseadas na desinformação. Algumas vêm do deslumbramento, comum na sociedade brasileira, de que os produtos importados são melhores que os nacionais. Nada que se faz no país tem qualidade. Normalmente, essa é uma visão de colunistas de grandes veículos de comunicação nacionais que moram ou moraram algum tempo no exterior.


Três fases


Outra fatia das críticas vem da falta de confiança na própria capacidade produtiva e desenvolvimentista do país. Mas dizer que as universidades e os institutos de pesquisa não têm o direito de estudar ou não têm a capacidade de desenvolver algo novo e inédito é no mínimo desconhecer a história recente do Brasil. Há inúmeras mostras da capacidade intelectual e científica dos pesquisadores brasileiros.


Recapitulando rapidamente, o Sistema Brasileiro de Televisão Digital foi criado pelo Decreto 4.901, de 26 de novembro de 2003. Os principais objetivos, além da transição para um modelo digital de TV, são usar essa transição para gerar inclusão digital, criar uma rede universal de ensino a distância e desenvolver a indústria nacional.


Com base nesses quatro objetivos principais (o decreto é muito mais amplo), percebe-se claramente uma reinterpretação da evolução tecnológica. Ao contrário do que vinha sendo feito até então pela Anatel, foram estabelecidos objetivos baseados nas necessidades socioeconômicas, para só depois buscar a tecnologia que melhor atenda a esses requisitos. Portanto, não houve nenhum devaneio ou nacionalismo forçado para mostrar algo incompatível com as capacidades tecnológicas nacionais.


Num segundo momento, o SBTVD foi dividido em três fases de execução: a primeira, que está em andamento agora, chamada de ‘apoio à decisão’, pretende estudar as diferentes alternativas e sugerir um modelo de referência. Estão sendo englobados estudos sobre os três principais sistemas de TV digital (ATSC, DVB e ISDB), além do desenvolvimento inicial de uma alternativa nacional.


Em tempo


Portanto, em nenhum momento o SBTVD implica necessariamente o desenvolvimento de algo nacional. O resultado final dessa fase de apoio à decisão pode representar, por parte do governo, a opção por um sistema já estabelecido, baseado nos estudos em andamento. Caso algum dos três sistemas atenda aos objetivos do decreto, nada impede que seja adotado. Por outro lado, para a alternativa nacional ser mais viável, é preciso mostrar, com provas-conceito, que atende melhor aos objetivos estabelecidos.


A segunda fase, que deve iniciar-se imediatamente após a definição do modelo que o Brasil vai adotar, já existente ou local, é a de desenvolvimento. Nessa fase, o modelo de referência, produzido na fase anterior, será desenvolvido e preparado para a implantação – a terceira fase do SBTVD.


Numa avaliação rápida do que foi desenvolvido e apresentado pelas mais de 100 instituições envolvidos no processo, é possível perceber que há condições e conhecimento suficientes para desenvolver um sistema de TV digital nacional. Os primeiros resultados já estão aparecendo, com aplicações sendo testadas, softwares especificados e reuniões visando planejar a integração final das diferentes partes. Entres os pesquisadores há consenso de que a espinha dorsal do sistema será implementada e testada a tempo, ou seja, até dezembro, conforme determina o Decreto 5.393, de 10 de março de 2005. Atualmente, há mais de 1.500 pesquisadores dedicados a esses estudos, um número sem dúvida razoável, se considerarmos a dedicação histórica a outros projetos de P&D.


Impossibilidade evidente


Os resultados estão aparecendo, embora alguns grupos de pesquisa ainda não tenham sido contratados pela Finep nem recebido os recursos. Os editais para a contratação das instituições foram divididos em três lotes. Parte dos vencedores do segundo lote e do terceiro lote ainda não foi contratada. Por isso, várias instituições ainda não começaram as pesquisas, o que, se demorar ainda mais, pode comprometer parte do resultado esperado.


Nesse aspecto reside a primeira de uma série de contradições do governo na condução do processo. Se por um lado parte do governo se empenha em favorecer os resultados, por outro, falta apoio a inúmeras atividades, e o principal: liberação das verbas e desburocratização de algumas atividades.


No início do governo Lula, quando o então ministro das Comunicações, Miro Teixeira, afirmou que o país faria seu sistema de televisão digital a qualquer custo, muitas críticas surgiram. No entanto, após o pragmatismo trazido pelo ministro Eunício de Oliveira e sua equipe, o sonho nacionalista de Miro cedeu lugar a pesquisas sérias e considerações sobre a real finalidade da TV digital.


O Decreto 4.901 veio sacramentar essa nova visão, na qual o enfoque social era evidente. Porém, a surpresa veio com o lançamento dos editais. Nenhum tratava de inclusão digital ou educação, objetivos primordiais do decreto que criou o SBTVD. A explicação oficial é que esses editais ainda vão sair. Mas, considerando o prazo estabelecido pelo decreto 5.393, fica evidente essa impossibilidade. Além disso, atrasos no repasse das verbas prejudicaram o início das atividades dos grupos que já estão atuando e continuam prejudicando o inicio dos consórcios ainda não contratados.


Ações limitadas


Outra contradição reside na construção de uma estação experimental de TV digital, na qual os testes de integração deveriam ser feitos. Desde o início do SBTVD fala-se da construção dessa estação, que deveria ser construída na sede do CPqD, em Campinas (SP). No entanto, essa estação ainda não saiu do papel, e mesmo que comece a sair, não há mais tempo hábil para terminá-la, considerando que os testes deveriam começar daqui a dois meses.


Sem plenas condições de desenvolvimento, problemas ficam em evidência agora, com a entrada do jornalista Hélio Costa no Ministério das Comunicações. Por um lado, o novo ministro tem relações antigas com as empresas de radiodifusão, contrárias ao SBTVD. Isso ficou claro com as críticas que fez quando ainda ocupava o cargo de senador, ocasião em que criticou duramente o setor de telefonia móvel, que estaria entrando na radiodifusão e poderia tirar anunciantes dessas empresas. Por outro lado, Hélio Costa também criticou duramente a defesa, principalmente da Rede Globo, do sistema de alta definição para a TV digital brasileira. Segundo ele, ‘alta definição é coisa de rico’. No discurso de posse deixou claro que pretende definir o sistema o quanto antes, não demonstrando, em princípio, preferência pelo desenvolvimento nacional ou pela adoção total de um padrão estrangeiro.


Se o antigo ministro afirmava que o SBTVD era uma das prioridades do ministério, intenção manifestada inúmeras vezes pelo secretário de Telecomunicações, Mauro Oliveira, esses interesses não se concretizaram em ações de apoio à pesquisa e ao desenvolvimento. Agora assume um ministro criticando a alta definição e focando os objetivos iniciais do SBTVD, mas com relações antigas com um setor que se opõe verdadeiramente ao caminho adotado pelo país.


Nova abordagem


Essa oposição das emissoras de televisão, capitaneada pela Rede Globo, é muito mais complexa do que os argumentos usualmente apresentados. O setor, de olho na exportação de conteúdo, enxerga na alta definição o futuro da televisão, no qual a interatividade representa papel secundário. Também tem pressa na definição do modelo, argumentando que as empresas estão perdendo dinheiro por não oferecerem um produto desenvolvido em conformidade com as novas tecnologias.


Por trás disso, porém, há um interesse camuflado em manter o canal de 6MHz para as transmissões de TV, o que representa uma pressão adicional contra a entrada de novos players no setor. É um trunfo contra a tão falada democratização dos meios de comunicação. Mantendo a atual divisão do espectro, incluindo aqui o modelo de distribuição, as emissoras praticamente mantêm o status quo desenvolvido nesses mais de 50 anos de televisão. Ou pelo menos dificultam bastante qualquer remodelação.


Vale lembrar que o SBTVD não se restringe a uma simples opção tecnológica, mas abrange uma série de estudos que pretendem viabilizar uma revolução social até pouco tempo atrás difícil de ser imaginada. Nessa nova abordagem, modelos de negócio inovadores e novas formas de regulamentação podem se tornar necessárias. Nesse caso, como fica a posição do governo e das emissoras?


Foco ideal


Só para fazer um parênteses, a BBC focou seu mercado na produção de conteúdo, teoricamente o core business de todas as emissoras de radiodifusão. No caso brasileiro, essa alternativa parece ter sido descartada desde o princípio pelas principais emissoras, que pretendem continuar fazendo a distribuição também.


Só para explicar rapidamente: na televisão analógica um canal de 6MHz corresponde a um canal de televisão. Quem produz o conteúdo também o distribui, sendo dono das antenas de transmissão. No modelo digital, a freqüência de um canal medida em MHz não corresponde mais a um canal de televisão. Num canal de 6MHz é possível transmitir vários canais digitais. Dessa forma, é possível terceirizar a transmissão, e a emissora faz apenas o conteúdo, sem se preocupar com a transmissão.


Foi isso que fez a BBC, e segundo vários analistas, é uma ou a saída para a Rede Globo, que tem produção de conteúdo, tanto de TV e rádio como de internet, destacada internacionalmente. Por outro lado, tem tido experiência trágica com a tentativa, frustrada, de transmitir também os sinais de TV a cabo, o que lhe rendeu prejuízos astronômicos. O SBTVD poderia representar, além da revolução social pretendida pelo governo, uma nova abordagem para as emissoras de televisão, focando o mercado no que elas realmente sabem fazer: conteúdo para televisão.


Dialogar e agregar


Concluindo, o país tem dado uma resposta muito positiva perante o desafio de iniciar os estudos práticos do SBTVD, mesmo no tempo exíguo e sem recursos, ou com recursos escassos. O primeiro resultado concreto alcançado foi a disseminação do conhecimento. Isso é extremamente positivo, pois hoje já é possível ter uma visão clara de que a academia, aliada à indústria e aos institutos de pesquisa, tem condições de desenvolver um sistema de TV digital que atenda plenamente aos objetivos traçados pelo decreto que criou o SBTVB.


Mas não podemos esquecer que várias questões ainda estão em aberto. Ao novo ministro expõe-se o desafio de aglutinar as forças em torno do tema, garantindo a viabilidade financeira das pesquisas e projetando a segunda fase, quando os atuais resultados deverão ser expandidos e preparados para a implantação.


Além disso, resta o desafio, desta vez de todos os integrantes do SBTVD, de dialogar e agregar todos os elos envolvidos na cadeia de valor da TV digital, principalmente com o setor de radiodifusão, cliente final do SBTVD. Numa sociedade moderna e democrática não é mais possível impor padrões autocraticamente. Para o sucesso do SBTVD é pertinente chegar a um fator comum com a academia, que se dispôs a aceitar o desafio de desenvolver o SBTVD, com a indústria, que vai explorar o modelo, com as emissoras de televisão, que vão viabilizar os serviços de inclusão pretendidos, e principalmente, com a sociedade, que vai usufruir dos benefícios.

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Jornalista e pesquisador de TV digital interativa