Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Bicentenário comemorado na data errada

Desde 2000, se comemorara o aniversário de surgimento da imprensa no Brasil em 1º de junho, resultado de um movimento iniciado pela ARI – Associação Riograndense de Imprensa – em 1999, cujo resultado foi a aprovação de um projeto de lei no Congresso Nacional, mudando o Dia Nacional da Imprensa de 10 de setembro, dia em que circulou pela primeira vez a Gazeta do Rio de Janeiro, para 1º de junho, dia em que surgiu o Correio Braziliense.

Os argumentos favoráveis a que o periódico de Hipólito José da Costa Pereira Furtado seja tomado como a legítima imprensa (coisa que a Gazeta não seria por ser oficial e estar sob censura) são controversos. No entanto, é inquestionável que há um erro na atribuição da data. A imprensa no Brasil não surgiu, em hipótese alguma, em 1º de junho.

O erro percorre toda a historiografia brasileira (Carlos Rizzini, Isabel Lustosa, Nelson Werneck Sodré e Juarez Bahia, por exemplo). Na primeira edição do Correio Braziliense, Hipólito data o primeiro texto com o 1º de junho, o que induz a leitura de que seria esta a data de circulação do periódico. No entanto, nem o mês da capa remete à data da circulação, nem o dia se refere ao periódico como um todo, mas apenas ao primeiro texto. Foi o dia em que Hipólito começou a escrever o jornal.

Texto de apresentação

Desta forma, a data de surgimento atribuída ao Correio é uma impossibilidade histórica, oriunda de uma leitura voluntariosa e, involuntariamente, anacrônica. Na primeira edição do Correio, a notícia mais atual é de 15 de junho de 1808.

Correio Braziliense, junho de 1808, página 78

É evidente que Hipólito, em Londres, onde estava em auto-exílio escrevendo o periódico, não poderia noticiar um fato ocorrido em 15 de junho até o dia 31 de maio, última data possível para redigir um jornal para circular no dia seguinte. Portanto, é impossível que a data de fundação da imprensa no Brasil seja 1º de junho de 1808. O erro é, provavelmente, resultado da leitura da página 3 do periódico, datada de ‘junho de 1808’.

E também do texto de apresentação, na página 3, datado de 1º de junho, dia em que foi provavelmente escrito, o que era a prática com todos os outros textos do periódico.

‘Documentos de junho’ ou ‘até junho’

Como o hábito usual da imprensa contemporânea e da grande maioria dos jornais ao longo da história da imprensa no Brasil é colocar na capa a data da publicação, o recorte acima foi interpretado como a data de publicação. Na falta de um dia específico, até pela periodicidade mensal do Correio, foi atribuído o primeiro dia do mês, data do primeiro texto. No entanto, a notícia de 15 de junho desmente esta data. Na segunda edição, datada de julho, Hipólito repete o procedimento.

Correio Braziliense, julho de 1808, página 143

Correio Braziliense, julho de 1808, página 81

E na edição de agosto faz a mesma coisa.

Correio Braziliense, agosto de 1808, página 199

Correio Braziliense, agosto de 1808, página 153

Portanto, é razoável concluir que o mês que Hipólito põe na capa, ao contrário do que era usual e da prática contemporânea, se refere ao mês de cobertura ainda que ele publique notícias de meses anteriores, sobretudo as que chegam de longe e, pelo grau de desenvolvimento dos transportes na época, chegam atrasadas. A capa da primeira edição deve ser lida como ‘documentos, acontecimentos e textos doutrinários de junho’ ou ‘até junho’.

15 dias para redigir, mais 15 para imprimir

Esta organização no Correio remete a uma relação do autor com sua obra que pouco tem a ver com informações periódicas de consumo rápido, tendência que o jornalismo já começava a trilhar no século 19. Hipólito produz algo perene. Diz Alberto Dines, na coletânea editada pela Biblioteca Nacional com todas as edições do CB:

‘Nada sugere a descartabilidade ou a fragmentação. Tudo induz à perenidade. Seja no tocante ao teor, seja nos recursos voltados para a consulta e a referência. Exemplo da ênfase são as capas rigorosamente uniformes, como frontispícios de livro. Servem para marcar as edições que iniciam os volumes (…). Quanto à organização das páginas, segue a organização semestral, tal como o índice que o redator organiza com a minúcia que lhe é peculiar.’

Sendo obra de referência, é compreensivo que Hipólito organize seu trabalho pensando na coleção completa, encartada. Quando os volumes são colocados juntos, como uma única obra, parece muito mais razoável a data remeter ao mês de cobertura. Assim, a recuperação de informação é privilegiada. O Correio se insere mais próximo da cultura livresca do que da cultura periodística. Hipólito pensa como bibliotecário de sua própria obra. Por isso, é compreensível tal organização. Também por este motivo o 1º de junho, data considerada inaugural da imprensa no Brasil, é uma impossibilidade histórica.

O prazo limite de notícias, ao longo das primeiras edições, é normalmente o dia 15 do mês anotado nas capas. Na primeira edição, este é o dia da última notícia publicada. Como o texto de abertura da primeira edição, onde Hipólito expõe seu projeto para o Correio Braziliense, data de 1º de junho de 1808, tudo indica que, num periódico mensal, esta seja a data em que ele começou a escrever a primeira edição do Correio. Levou 15 dias para terminar a redação, passando, em seguida, a acompanhar o processo de composição e impressão, que deveria levar, portanto, outros 15 dias, fechando o mês.

Navio levava dois meses

É evidente que Hipólito, um periodista neófito e um pensador liberal ligado ao pensamento iluminista, priorizou o resultado, o conteúdo final do Correio, e não o processo de sua fabricação, aspecto no qual se limitou a organizar o próprio tempo. As páginas eram compostas em seqüência, o que impedia que houvesse a antecipação da impressão de algumas páginas, ainda com textos sendo escritos. Assim, a impressão não poderia se adiantar muito antes ao processo de redação. Além disso, Hipólito tinha que supervisionar o trabalho dos impressores ingleses, que compunham em uma língua estrangeira para eles, o português. Isso provocava muitos erros e aumentava o trabalho do redator, que na segunda edição pede desculpas e justifica tais erros.

Correio Braziliense, julho de 1808, página 81

Além disso, o prelo mais moderno no momento em que Hipólito está redigindo o Correio é o Stanhope, inventado pelo lorde Charles Stanhope (1753-1816) por volta de 1795. Se Hipólito usou o que havia de mais moderno na época, isso significa 250 impressões por hora. Cada edição do Correio exigia 40 impressões, duas páginas por folha. Ou seja, uma tiragem de apenas 200 exemplares levaria 32 horas de prelo, sem contar as mudanças de placa de impressão, finalização e empacotamento. Em menos de duas semanas após o fim da redação do periódico seria impensável tê-lo pronto para embarcar para o Brasil. Os barcos também tinham freqüência irregular. Mas se Hipólito conseguisse despachar seu jornal em tempo mínimo, ele chegaria ao Brasil no início de setembro, pois a travessia de navio levava mais de dois meses.

Uma impossibilidade

Por tudo isso, a data de surgimento do Correio Braziliense pode ser assinalada como começo de julho ou, com otimismo, fim de junho. A chegada da imprensa ao Brasil não poderia ser antes do começo de setembro de 1808, dependendo do porto e da rota do navio utilizado. O 1º de junho de 1808 é apenas o dia em que o Correio começa a ser escrito, data que usualmente não é utilizada para assinalar o surgimento de uma obra impressa. Assim, o periódico de Hipólito e a Gazeta do Rio de Janeiro, redigida pelo frei Tibúrcio José da Rocha, são contemporâneos, sendo impossível afirmar, com certeza, qual começou a circular antes, pela imprecisão sobre a chegada do Correio ao Brasil.

A Gazeta do Rio de Janeiro, pelo contrário, adota a regra padrão e anuncie já no primeiro número quando irá circular.

Gazeta do Rio de Janeiro, 10 de setembro de 1808, página 4

Assim, o mês mais provável para a chegada da imprensa ao Brasil é setembro. E a única data precisa confiável é o 10 de setembro, dia em que começou a circular a Gazeta.

É muito provável, porém, que o Correio tenho circulado antes, no começo de setembro de 1808. De qualquer forma, junho é uma impossibilidade.

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Jornalista e professor da UFPR, Curitiba, PR