Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Como ter sucesso sem ceder na qualidade?

O desafio de se fazer uma televisão que possa ser chamada de pública começa naqueles que a assistem.

Em vista do desgaste histórico que os bens públicos apresentaram no Brasil, uma televisão que se compreenda como ‘de todos/as e para todos/as’ nunca deverá ser sinônimo de elitização artístico-intelectual, pela centralidade atribuída ao que seja definido como ‘culto’ em prejuízo de outras matrizes de perfil popular.

Porém, até que ponto se pode escapar de uma armadilha da comunicação sem cair em outra: recusar a segregação cultural, mas sofrer a submissão limitadora ao gosto convencionado como médio, na disputa pela adesão irrefletida de grandes audiências?

Eis o paradoxo que acompanha a comunicação de massa desde o seu advento. Como conciliar uma fala que seja dirigida a todos os segmentos sociais, dado que a televisão pública se pretende generalista (pelo menos a princípio), sem perder a profundidade do conteúdo, a perspectiva do contraditório e, principalmente, a possibilidade de representação identitária pluralista?

Abordagem crítica negativista

Muito se tem discutido sobre parâmetros de qualidade para a produção televisiva. Há inúmeros sentidos para a palavra – nenhum definitivo. Qualidade pode significar excelência técnica, discurso pluralista, estímulo à educação e ao exercício da cidadania… Uma experiência inovadora ou a obediência fidedigna aos padrões. Muitas dessas definições não são excludentes e podem ser trabalhadas juntas.

Também a idéia de sucesso é relativa: sucesso pode ser conquistar milhões de telespectadores ou cumprir bem aquilo a que se propôs. O problema está no fato de que nem todos, acadêmicos e profissionais, entendem dessa maneira.

No campo profissional, reduziu-se o termo qualidade à dimensão técnico-formal, em aspectos como melhor ângulo de câmera, texto objetivo e iluminação adequada. A acepção de qualidade, nesse caso, remete a uma série de convenções em torno do ‘profissionalismo’, orientado no mais das vezes para a penetração do veículo junto a um público amplo.

Na esfera acadêmica, por sua vez, criou-se a ilusão de que características que apontam para a qualidade não pertencem à natureza da televisão, posição defendida pela abordagem crítica negativista, exemplificada pelo texto Sobre a Televisão, do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que saiu em edição no Brasil em 1997 pela Jorge Zahar. O resultado dessa postura teórica foi um tratamento de depreciação do meio, em relação, por exemplo, ao cinema: ‘Cinema é cult, TV é lixo cultural.’

Outra leitura das ‘audiências’

Apesar de aparentemente inconciliáveis, as críticas dos acadêmicos e os estímulos dos profissionais por audiência convergem no mesmo ponto: a figura do ‘telespectador médio’, a mesma forma depreciativa e limitada de tratar o público. Eis um referencial imaginário formado pelo mínimo denominador comum entre públicos diversificados quanto à cultura e ao espaço político, econômico e social que ocupam.

O público é visto como o sujeito apático, sem capacidade de escolha, como na metáfora polêmica do Homer Simpson, sugerida de forma reducionista pelo apresentador do Jornal Nacional William Bonner.

Compreender o público como um bloco homogêneo a que se pretende atingir funciona para conquistar grandes audiências consumidoras de produtos culturais. Ainda assim, com cada vez menos acerto – como tem mostrado a necessidade sentida pelas emissoras de TV comerciais de repensar tanto o formato de seus programas quanto os modos de interação com os distintos telespectadores.

Porém, para o projeto de televisão pública, outra deve ser a leitura das ‘audiências’, preocupada mais em compreender a diversidade de demandas dos grupos sociais e culturais do que em gerar consumidores. Está-se, portanto, diante de um desafio: o de criar uma televisão na qual a qualidade ande ao lado da quantidade.

Perspectiva de transformação social

O que ajuda a diferenciar a televisão pública das matrizes estatal e comercial é a preocupação com os direitos de cidadania, dentre os quais o de livre expressão cultural. Há de se esperar que os mais diversos grupos sociais possam se ver representados de alguma maneira em uma televisão que aspira à universalidade, não apenas para conquistar uma audiência diversificada, mas por vocação original, apesar do interesse público ser um preceito de todas as televisões segundo determinação constitucional.

No fim das contas, o que se pretende dizer com pluralidade representativa na televisão?

Uma opção convencional: programas direcionados para deficientes físicos, homossexuais, populações indígenas, comunidades quilombolas. O atendimento a grupos minoritários, que em geral não possuem espaço na mídia comercial, foi estratégia muitas vezes adotada pelas várias emissoras públicas e educativas no Brasil.

Porém, a presença de suas temáticas de urgência nos meios de comunicação não garante a melhoria das condições de vida dessas populações e, sobretudo, a representatividade simbólica adequada.

Tomemos o exemplo da comunicação comunitária. Desde as primeiras experiências, que tomavam por base os escritos de Paulo Freire sobre o dialogismo da educação, é sabido que não basta para as comunidades encontrarem representantes que possam falar por elas por meio da lógica delegativa, e sim, se faz necessário que a comunicação como dinâmica social passe a fazer parte de suas vidas, com a perspectiva de transformação social e ativação dos canais de fala e de participação.

Horizonte aponta para mudanças

No caso de uma televisão pública de alcance nacional, não estamos diante de um contexto comunitário, mas da diversidade de grupos sociais e seus respectivos interesses, que compartilham alguns elementos de unidade (no caso do Brasil, o idioma é um deles, apesar da variação regional de vocábulos e sotaques), mas com outros tantos aspectos de diferenciação.

A pluralidade cultural brasileira, um problema a ser superado quando se procura atingir um consumidor padrão, torna-se um desafio promissor para o fazer televisivo público: apropriações de sentido tornam ultrapassadas as oposições binárias fixas entre tradicional e moderno, urbano e rural, culto e popular, não como destruição do diferente em direção ao termo médio homogêneo, mas pela aceitação e coexistência de contextos culturais distintos.

Em termos de gênero televisivo, as fórmulas convencionais do entretenimento e do jornalismo mostram-se esgotadas, tendência evidenciada pela exigência do público por renovação – o que pode estar levando à valorização na TV de experiências que trabalhem com os limites (e as imbricações entre) dos dois campos, como os documentários, as séries realistas e o jornalismo de opinião.

Muito pode ensinar sobre diretrizes de sucesso na programação o gênero no qual as televisões públicas no Brasil mais souberam inovar: os programas infantis. E também nesse terreno o horizonte aponta para mudanças: tome-se o exemplo da série Um menino muito maluquinho (2006), bem-sucedida em termos de público e de crítica.

Experiências e visões mais dinâmicas

O programa, baseado no livro do cartunista Ziraldo, foi levado ao ar inicialmente pela antiga TVE Brasil. Conta a história do ‘menino maluquinho’ durante duas fases de sua vida, aos 5 e 10 anos, sob a ótica do personagem na idade adulta.

Ao mesmo tempo em que rompe com a corrente das produções infantis com um perfil pedagógico-educativo, recorrente em canais públicos, como o pioneiro Vila Sésamo da década de 1970-80 (Sesame Street, da PBS), a série escolhe não enveredar pela fórmula bem-sucedida do mágico e do fantasioso, como foi o caso do clássico brasileiro Castelo Rá-ti-bum (1994).

Um menino muito maluquinho opta por narrar a história de uma criança como qualquer outra diante de dramas humanos reais, como a morte, o amor e o medo – abordados, é claro, sob o ponto de vista do humor e da imaginação infantil que o gênero requer.

Ao assumir-se como uma série para ‘crianças de todas as idades’, a atração não perde um tom crítico-reflexivo, o que é raro acontecer sem se confundir com um ligeiro pedantismo. Em um dos episódios emblemáticos, a sociedade de consumo, que tem como consumidor especializado o público infanto-juvenil, é alvo de crítica na figura da personagem alegórica ‘Fada-Madrinha do Consumo’, que promete coisas fantásticas ao menino em seus sonhos, enquanto no dia-a-dia ele se vê seduzido pelo lançamento de novos brinquedos e importuna a mãe para obter o que deseja.

Exemplo de entretenimento criativo, com aspectos de reflexão sobre a condição humana, sem perder o naturalismo de uma ficção realista, Um menino muito maluquinho é uma experiência do que a televisão pública pode fazer.

Não há fórmulas a seguir: apenas experiências a serem trabalhadas e visões mais dinâmicas sobre os telespectadores a serem buscadas.

******

Jornalista e mestrando em Comunicação e Cultura na UFRJ, Rio de Janeiro, RJ