Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Defesa do consumidor contra Gugu

‘Nós não falamos para dizer alguma coisa, mas para obter um certo efeito.’ Joseph Goebbels

Protocolos vitriólicos, nem explicáveis por todo amor à filosofia do jornalismo, conectam, num insigth bastante curioso, estudos fundamentais da estética e da ética, sempre na tentativa de explicar os porquês de o público demandar, mais do que as TVs distribuírem, o esgoto televisivo dominical.

A discussão sobre as nimiedades específicas do domingo, na TV, poderia render ‘n’ tratados midiáticos, condenados indesviavelmente ao mesmo lugar a que as bibliotecas destinam os daguerreótipos esmaecidos: o opróbrio. Curiosa, nessa filosofia, e inaudita, sobretudo, a determinação do Ministério Público de São Paulo, semana passada, de corrigir as teratologias de nossa TV, estéticas e morais, pelo Código de Defesa do Consumidor.

Também já era hora: chegou-se àquele ponto imponderável em que liberdade de expressão não pode ser confundida com falsificação das regras do jogo para a liberdade de expressão. Até porque a sede pelo Ibope (esse curioso abuso da estatística) já mostrou até que ponto se pode chegar: o da pura cratofania, da admiração pelo bizarro, que injeta dominicalmente, e bombeia sobretudo, tanta ‘vida’ nas tardes dos nossos ‘coisificados’. E dá-lhes tanta vênia.

Todos na lista

Nos anos 1980, quem chamava a atenção para essas bizarrias específicas, dentro da mais alta linhagem da escola do formalismo, era o finado e refinado José Guilherme Merquior. O talhe acentuadamente formalista de sua crítica tinha como déplacé toda a clerezia das baixas ‘artes’, incluindo obviamente a mídia de quinta categoria, mais competitiva do que competente, cuja moral denuncista vinha recheada de polvilhos de Hollywood – daí ter sido tão aceita pela mansuetude dos que, como maus críticos de mídia, sabiam que tornar o produto jornalístico algo novelesco era dos males o pior.

Merquior sustentava que tudo cairia para o caminho do kitsch e do efeitismo, mais cedo ou mais tarde. Escreveu Merquior:

‘O Kitsch é uma arte vocacionalmente efeitista, feita ‘pour épater’. No seu artigo da Partisan Review, ‘Avant-garde and Kitsch’ (artigo pioneiro na análise do monstro), Clement Greenberg afirma que, enquanto a arte de vanguarda, sendo como é, ‘abstrata’, introspectiva e reflexiva, dedicada às explorações ‘metalingüísticas’, tende a imitar os processos da arte, o Kitsch imita os efeitos da arte. Numa época em que toda arte autêntica cultiva o que se poderia chamar de califobia, tornando suspeito o hedonismo estético, o estilo comercial estende a mão ao ‘bonito’, regala-se com o ‘deleite’ produzido pelo recurso descarado aos truques mais teatrais.’

Essa teatralidade, esse efeitismo, num ciclo bastante curioso, volta-e-meia grassam na nossa TV, eletrodoméstico para o qual rumam os rebotalhos e rebarbas do que algum dia pode ter sido chamado de ‘arte’ – seja da apuração, seja da estruturação ou simplesmente da concessão de um nexo. Que, num processo cadente, passa de arte popular, para arte popularesca, depois arte grotesca. Que, enfim, vai caleidoscopicamente se misturar como alegoria rebarbativa ou colágeno a moldar o estuque de reportagens de quinta categoria. Que, por suas vezes, também em processos cadentes, vão se confundindo com show. Aqui, então, duas decadências, de mãos dadas, dilatam o império televisivo a entretecer nosso consumidor de imagens: surge disso um monstro, com pedaços do pior da arte kitsch, com o pior do jornalismo – e sobretudo com a pior das intenções: a mentira.

Ninguém, entre os corifeus que se dedicam ao mister da TV brazuca, pescou a novidade que foi uma promotora ter proposto punição a Gugu Liberato com base no Código de Defesa do Consumidor. A promotora de Justiça Deborah Pierri ajuizou Ação Civil Pública contra o apresentador Gugu Liberato, do SBT, na semana passada. Motivo: exibição de entrevista com supostos membros do PCC, no dia 7 de setembro do ano passado. A promotora quer que Gugu seja condenado a pagar, no mínimo, 750 mil reais – quantia que deve ser destinada ao Fundo de Reparação de Direitos Difusos. A ação foi distribuída para a 6ª Vara Cível de São Paulo.

A promotora considera que o apresentador usou prática comercial abusiva e, por isso, quer que a Justiça arbitre o valor da indenização sobre a quantia obtida com merchandising no programa Domingo Legal. ‘Ele é verdadeiramente o beneficiário direto de merchandising feito em seu programa’, disse a promotora.

Deborah Pierri afirma que os consumidores foram expostos às imagens indevidamente veiculadas no programa dominical. A promotora quer que a Justiça determine que o SBT revele o valor de merchandising no dia do programa. Na epígrafe de sua proposição, a promotora sustentou uma citação de Gabriel García Márquez: ‘Para ser jornalista é preciso ter uma base cultural considerável e muita prática. Também é preciso muita ética. Há tantos maus jornalistas que quando não têm notícias, as inventam’.

Refere a promotora que o inquérito civil foi instaurado porque…

‘…naquela data foi exibida fictícia entrevista, na qual supostos membros do Primeiro Comando da Capital (PCC), utilizando-se dos codinomes ‘Alfa’ e ‘Beta’, um deles portando arma de fogo, passaram a proferir diversas ameaças de morte e seqüestro dirigidas a personalidades (apresentadores de programas de televisão, vice-prefeito da Capital e também à líder religioso).’

Ela prossegue:

‘As ameaças foram expressas nas seguintes frases: ‘a gente quer mostrar que quem manda é o PCC..’, ‘…existe alguma vantagem de você participar do PCC? – A vantagem é o seguinte, é o respeito que você tem onde você chega, você é bem recebido, entendeu…é como se você fosse um pai.’, ‘… a gente estamos aí de olho nisso aí. Vamos partir pro tudo ou nada, entendeu?’, ‘…porque o nosso negócio é esse, é se armar. Tá cada vez o armamento mais forte.’, e ainda ‘…o que vocês gostariam de falar para as autoridades que estão nos vendo nesse momento? – …pra mostrar para eles o poder que a gente tem que eles deixou. A gente alcançamos onde tamos nesse poder. E é o seguinte, tem muitos troxa aí, que estão falando muito aí. Tipo esse Datena aí e tal. E não vai ficar assim não. Eles tem família, tem neto, tem filho, e é o seguinte, vai ser só bala mesmo na cabeça. A gente não tá de brincadeira não, certo? E é só isso que eu tenho pra falar… esse Datena, esse Godói, esse vice-prefeito aí o Bicudo, tá tudo mundo, todo mundo tá na lista.’ (sic).’

Calibrados e subsumidos 

Deborah Pierri sustenta que…

‘…a impropriedade do programa nesse particular foi grandiosa, pois segundo informações obtidas no site do SBT, o potencial lesivo poderia alcançar 150.000.000 (cento e cinqüenta milhões) de brasileiros, difusamente considerados em 98% do território nacional, como demonstrado à fls. 51 do Inquérito Civil. A iníqua conduta causou grande clamor popular de repercussão nacional, fatos comprovados em inúmeras reportagens nos mais diversos meios de comunicação’.

Mais da promotora de Justiça que representou contra Gugu Liberato. Para ela…

‘…vale lembrar que a exibição da entrevista com supostos membros do PCC, em que um deles estava armado e dirigiu ameaças de morte e seqüestro a autoridades e apresentadores das emissoras concorrente, expôs de modo suficiente todos os consumidores à prática abusiva, consoante se depreende da interpretação exigível dos comandos normativos expressos no CDC (arts. 29, 36, 37 ), legitimando a atuação do Ministério Público na defesa dos consumidores e dentre eles, os considerados como pertencentes ao grupo de infantes e adolescentes’.

A arguição levanta números:

‘O programa Domingo Legal, de 07 de setembro de 2003 pode ter alcançado 17 milhões de lares em mais de 207 cidades do país e conforme, informações contidas no site do próprio SBT 150.000.000 (cento e cinqüenta milhões) de brasileiros podem ter sido alvo dessa prática ignóbil. A grandeza dos números é proporcional a ausência de freios na ação do réu em ter autorizado ou permitido que se veiculasse imagens que afetaram a vida nacional, especialmente, quando é notória a falta de credibilidade atribuída ao Estado no combate ao crime organizado e a superação da violência cotidiana’.

Alguns, dentre a paidéia enragé dos críticos de TV, interpretaram a ação do Ministério Público como mais um bocejo do Parquet. Errado: nada de museificante na peça de nossa promotora, muito pelo contrário. Ela instala (e propõe) uma regulação que, antes de mais nada, oferece a exame o desfibramento do tecido que se propõe jornalístico, para submetê-lo ao estatuto do consumismo. Esta ai a novidade: jornalistas e comunicadores, muitas vezes com qualidade produtiva em contínua inflação, estarão tratando, sobretudo, com consumidores. E pelo Código de Defesa do Consumidor passarão a ser calibrados, subsumidos.

Nem arrepio nem urticária

Está discussão, como já exposto neste Observatório, ganhou pertinência nos anos 1960 e 70. Num trabalho apresentado no XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação, em Campo Grande (MS), em setembro 2001, o pesquisador João Freire Filho iniciava o estudo falando das posturas de Nelson Rodrigues sobre a TV brasileira:

‘Para Nelson, a unanimidade contra a TV não era burra – era irreal e hipócrita. Havia, segundo ele, certas coisas que um grã-fino só revelava num terreno baldio, à luz dos archotes, na presença inofensiva de uma cabra vadia. Outras não dizia nem no terreno baldio. Por exemplo: o grã-fino só admitiria que gostava de televisão ao médium, depois de morto (Rodrigues, s/d, 67; ver, também, Rodrigues, 1996, 234). A condição social de ‘pequeno burguês’ – ‘sem nenhum laivo de grã-finismo’ ou ‘pose de intelectual’ (Nelson gostava de apresentar-se como um intuitivo) – dava ao cronista, em contrapartida, ‘descaro bastante’ para confessar de peito aberto não só que assistia à televisão brasileira, como gostava dela, com todo o seu tão característico e discutido mau gosto (Rodrigues, s/d, 87). A chiadeira contra a má qualidade da TV no Brasil ganhara força no finalzinho da década sessenta, quando o veículo se consolidava como um típico meio de comunicação de massa – só para se ter uma idéia, o número de aparelhos em uso no país saltou de irrisórios 2 mil, em 1950, para 760 mil, em 1960, e 4 milhões e 931 mil, em 1970 (Mira, 1995, 30).’

 João Freire Filho pontua que…

‘…o novo dispositivo audiovisual cresceu rodeado de suspeitas por todos os lados: muitos palpitavam que ‘a máquina de fazer doidos’ – na definição de Sérgio Porto – seria responsável por toda uma geração de enfermos sexuais, mentecaptos ou deficientes visuais (os terríveis raios catódicos, lembram-se?). ‘Fábrica de psicopatas, segundos os psiquiatras, e transmissora de subcultura, vendida como bem de consumo, segundo os sociólogos, a TV carioca está ameaçando de entorpecimento e alienação total cerca de 2 milhões de pessoas que a vêem diariamente…’. Quem abrisse o Caderno B do Jornal do Brasil, na manhã de 16 de junho de 1968, era brindado com mais uma extensa reportagem sobre os poderes luciferinos da televisão. Em meio as previsões agourentas colhidas pelo autor da matéria, Israel Tabak, destacam-se as palavras do psiquiatra e psicanalista Leão Cabernite: a televisão – preveniu o alienista – estava tornando-se a nova ‘bolinha’; seu ‘vício’ começava a criar o problema da dependência física. Após acentuar a péssima qualidade da programação, Cabernite alertou que ‘a continuar desta maneira, em bem pouco tempo a nossa televisão poderá transformar-se numa imensa e eficiente fábrica de psicopatas’. Para reverter esse processo, era preciso, primeiro, ‘uma competente legislação’, depois, ‘uma competente polícia sanitária’ que garantisse o cumprimento da lei. Dos cerca de 2 milhões de telespectadores ‘colados’ diariamente aos 600 mil aparelhos ligados no Rio de Janeiro em 1968, 1 milhão e 400 mil eram pobres ou muito pobres (favelados), registrou Tabak.’

O estudo se pergunta: ‘Ao que assistia diariamente esse público das classes C e D (de acordo com a nomenclatura do Ibope, o ‘grande ditador de programação’)? E responde:

‘Basicamente novelas e programas de auditórios. De acordo com o sociólogo Chaim Katz, então professor de Fundamentos Antropológicos e Psicológicos da Comunicação da UFRJ, os folhetins televisivos funcionavam como uma espécie de ‘tranqüilizante’, de ‘sedativo’. Já o estupendo sucesso dos programas que exploravam ‘o deboche, o sadismo e coisas afins’ somente podia ser compreendido com o auxílio da ‘psicopatologia social’: ‘Quem trabalha o dia todo sem perspectivas, explorado, ganhando mal, (…) ridicularizado o dia todo, agora se compraz em ver os outros sendo ridicularizados. Ele debocha também e sente necessidade de debochar, mas não sabe que no fundo está debochando de si mesmo.’

 Para João Freire Filho o telespectador de nível cultural mais elevado e maior poder aquisitivo sentia-se – nas palavras de Tabak – ‘relegado e agredido’ pela linha de programação vigente; em protesto, conservava o aparelho de TV geralmente desligado (40% do total). Uma ‘rápida pesquisa’ revelava o que esse esquadrão dissidente (formado por ‘jovens universitários, intelectuais e em geral o setor instruído da classe média’) esperava do veículo: ‘shows bem feitos de música popular, sem a imposição de ídolos, documentários e filmes de bom nível, telejornais que exploram mais a imagem dos fatos, e debates políticos livres’.

Mas a maré favorecia mesmo os comunicadores de massa e os programas alcunhados pela imprensa de mundo cão.

‘Mendigos, indigentes, loucos, viciados, casais desajustados, ladrões. O desfile se repete há 4 anos no Rio e São Paulo para uma platéia que o IBOPE revela ser fiel’, deplorou Veja, em setembro de 68 (‘Mundo cão, não’, 25/09/1968, 76). A revista oficializava, com a reportagem, seu apoio à campanha contra o ‘grotesco na TV’ organizada, no Rio de Janeiro, pelo jornal Última Hora. Danton Jobim (presidente da Associação Brasileira de Imprensa e diretor da UH) descera a lenha nos programas que veiculavam ‘casos de desgraça humana’ e ‘a exploração sensacionalista da miséria’, pedindo ao governo que censurasse a ‘televisão-espetáculo’. A virada do ano não prometia, entretanto, grandes novidades nesse sentido, lamentou, uma vez mais, a revista VejaO Homem do Sapato Branco continuaria fazendo desfilar diante das câmeras ‘uma galeria de hermafroditas e marginais’; Dercy Gonçalves, ‘a título de caridade’, seguiria apresentando ‘cancerosos e débeis mentais’; e Glória Magadan, diretora da Central Globo de Telenovelas, manteria em funcionamento a indústria de ‘lágrimas, drama, violência, emoção popular. Tudo elaborado mediante cuidadosas pesquisas de mercado’ (‘TV em 1969: O velho é novidade’, 01/01/1969, 54).’

Ele prossegue:

‘Dizendo-se ‘copiado’, Chacrinha partiu para o contra-ataque – comprovou que uma fita com as emocionantes últimas palavras de um suicida, exibida por seu competidor mais direto, era uma farsa. Flávio admitiu o engodo, pondo a culpa numa certa Equipe 2001, especialista na venda de reportagens mundo-cão e em descobrir os podres dos artistas que se sentavam no banco dos réus de Quem Tem Medo da Verdade? (‘Chacrinha denuncia fraude de Flávio’, Amiga, 17/08/1971, 4-5; ‘Flávio: Chacrinha fez o que eu faria’, Amiga, 24/08/1971, 4-5). Logo em seguida, no dia 29, último domingo de agosto, aconteceu o episódio que mexeu de vez com a suscetibilidade e os brios dos partidários da censura. A disputada mãe-de-santo Dona Cacilda de Assis (que dizia receber o espírito do ‘Seu Sete da Lira’, um exu da Umbanda) transformou os estúdios da Globo e da Tupi em verdadeiros terreiros de macumba. ‘Embora as apresentações diferissem,’ relatou o Estado de São Paulo (03/09/1971, 4), ‘o espetáculo em si foi o mesmo: os umbandistas de ‘Seu Sete’ invadiram o palco (baianas, cantores, pessoas bem vestidas, em ‘relações públicas’…) num tumulto indescritível.’ A Censura qualificou a apresentação de ‘Seu Sete’ de ‘baixo espiritismo, exploração da crendice popular e favorecimento da propaganda do charlatanismo’; a Igreja, por intermédio do secretário geral da CNBB, declarou que a ‘inclinação à transcendência do povo brasileiro’ estava sendo utilizada por ‘indivíduos sem escrúpulos, em atividades pseudo-religiosas’ (Jornal da Tarde, 03/09/1971; apud Mira, 1995, 36).’

 Segundo João Freire Filho…

‘…reza a lenda que a primeira-dama D. Cyla Médici caiu em transe, enquanto assistia ao programa (Costa et al., 1986, 249). Foi nesse contexto conturbado que Hygino Corsetti fez o pronunciamento que avinagrou o humor de Nelson de Rodrigues. O ministro chegou a ventilar a hipótese de cassar a concessão das emissoras que insistissem com o ‘sensacionalismo’ e a ‘baixaria’; no final, limitou-se a anunciar que o governo pretendia acabar com as transmissões ao vivo na televisão brasileira (com ou sem a presença de público no auditório), e que seria nomeada uma comissão interministerial com a responsabilidade de fixar, no prazo de um mês, normas de condutas para as emissoras (‘Cassação’, O Estado de S. Paulo, 10/09/1971, 9; ‘TV perde programas ao vivo’, OESP, 11/09/1971, 9). Antecipando-se às medidas governamentais, Globo e Tupi assinaram um protocolo de autocensura cuja validade se estenderia até a entrada em vigor do ‘Código de Ética da Televisão Brasileira’, em estudos na área federal. Segundo o então diretor da Central Globo de Produções, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, o acordo firmado entre as duas emissoras com intuito de ‘eliminar os espetáculos de mau gosto’ permitiria que impusesse ‘uma nova mentalidade aos programas de nível popular’ (OESP, 03/09/1971, 3; ‘Diretor da Globo anuncia outra mentalidade na TV’, Jornal do Brasil, 04/09/1971, 5). Mas, o que queriam, afinal, os iracundos opositores da televisão brasileira, questionava Nelson Rodrigues. Uma TV anti-público, igualzinha à Rádio MEC, solitária, despovoada, abandonada à própria sorte? ‘Se há uma emissora que precisa de uma média de Aristóteles, Goethe, Marx, é exatamente essa’, sustentou cronista. ‘Mas, para isso, para que cheguemos a um nível tão desejável, temos que esperar uns três milhões de anos. Daí para mais. Enquanto o mundo esteja nivelado por baixo, seremos fervorosos telespectadores’ (Rodrigues, 1996, 233). Numa linha de argumentação que já soa bastante familiar, Nelson costumava dizer que a televisão era o espelho do nosso povo. Havia, no seu dizer, uma ‘reciprocidade’ entre o nível de um e de outro: ‘A televisão é assim porque o telespectador também o é. Uma coisa depende da outra e as duas se justificam e se absolvem’ (Rodrigues, s/d, 119). Logo, o furor contra a televisão tinha dois gumes: ‘E se a televisão perguntar: – ‘O nosso nível é baixo. E o de vocês?’. Sim, e o nosso? (…) De que é que vive a televisão? Da audiência, sim, da santa e abnegada audiência. Muito bem. E essa audiência é constituída de quê? De esquimós, tiroleses, congoleses, chineses, pequineses, patagônios? Não. De brasileiros, meus amigos, de brasileiros’ (Rodrigues, 1996, 233).’

 Para o pesquisador…

‘…aos ‘radicais’ que, seguindo o ministro Corsetti, repetiam a ladainha ‘Precisamos mudar a televisão’, Nelson replicava que mais correto e inteligente seria ‘mudar o povo’: ‘(…) [A] meu ver o pronunciamento do sr. ministro tem destinatário. Em vez de fazer severas restrições à TV, sua excelência devia endereçá-las ao povo. E, então, chegaríamos a essa contingência realmente constrangedora: substituir um povo por outro povo’ (Rodrigues, 1996, 234). Nelson já fazia parte da história da televisão brasileira, quando se manifestou, de forma enfática, em sua defesa – entre outras atividades, integrara a lendária Resenha Facit, primeira mesa-redonda sobre futebol; apresentara, na TV Rio, Cabra Vadia, quadro sui generis de entrevistas realizado num cenário que simulava um terreno baldio, com caprinos de verdade pastando e tudo mais; escrevera, também, a primeira telenovela brasileira diária: A Morta Sem Espelho (1963) (Clark, 1991, 151-154; Castro, 1992, 332-333, 341-342, 345-346; Annette Schwartsman, ‘Juiz condenou Nelson ao fim-de-noite’, Folha de S. Paulo, tvfolha, 16/04/1995, 4; Esquenazi, 1996, 29-30, 98-99). A palavra concessão não provocava arrepios ou urticárias no escritor polivalente: ‘O sujeito que faz novela sabe o que a novela é, que ela deve ser, o que ela deve dizer. Novela é um gênero de concessão e eu fiz diversas vezes (…). Não me arrependo’, afirmou em depoimento prestado ao Serviço Nacional de Teatro, em 4 de dezembro de 1974 (Rodrigues, 1981, 115-116). Ao contrário do ministro Corsetti e de tantas outras autoridades governamentais e intelectuais, Nelson não via problema algum, inclusive, em usar a medição do Ibope como sismógrafo dos anseios da audiência: ‘(…) Essas pesquisas são imprescindíveis. Eu diria mesmo que o pior cego é o que não vê a utilidade de tais pesquisas. (Foi, naturalmente, um lapso de sua excelência)’ (Rodrigues, 1996, 233).’

Notícia-espetáculo

Como se vê, vão para 40 anos tentativas de regulamentação/fiscalização daquilo que as TVs produzem. Como gostava de referir Walter Benjamin, certas chaves históricas muitas vezes só acabam abrindo determinadas portas quando cotejadas com ‘a pureza e beleza do fracasso’.

Que seja lido, o episódio Gugu, não com olhos moralizantes, nem com os do oficiante da missa do método punitivo: mas como um erro que serviu para reorganizar latitudes, coligir escapulários éticos, enfim, balizar o que se produz nas TVs e sobretudo: expor ao osso a estrutura de produção de notícias-espetáculo, no âmbito desse eletrodoméstico macacal, a que se convencionou chamar, no grau zero da linguagem, de ‘A Televisão Brasileira’.

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Jornalista, autor de Falácia Genética: a Ideologia do DNA na Imprensa (Escrituras, 2004)