Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Do deus-aspirina às sanguessugas de Cristo

Têm chamado a atenção nos programas religiosos que invadem a maior parte dos canais abertos de televisão, além dos canais pertencentes a igrejas, inclusive a católica, a freqüência de ‘milagres’, constantes e diários. Ocorrem a todo momento. Em alguns programas evangélicos e católicos, chegam a cifras recordes. E esses milagres são das mais variadas espécies. Temos para todos os gostos e preferências.

Há milagres relacionados à vida financeira, inclusive com casos de recuperação econômica ou ganho em loterias que, de demoníacas, passam a ser operadoras sob os auspícios dos mais diferentes ‘santos’. Há os milagres de ordem familiar, em que a ‘impactação’ divina leva alcoólatras a pararem de beber, prostitutas a deixarem de se prostituir, drogados a abandonarem as drogas, como se para que tais fatos ocorram seja necessário apenas o auxílio direto dos deuses.

Um sem número de demônios invade cada templo ou igreja, sendo raros nos locais onde poderiam ser mais comuns, como em prostíbulos, bares, casas de comércio, de câmbio ou até mesmo no Congresso Nacional. Quem quiser ver um demônio de perto é só freqüentar algumas de nossas igrejas que, por certo, lá encontrará demônios, capetas, ‘inimigos’ em profusão.

Creio que algumas denominações colocam a palavra ‘Deus’ na porta dos seus templos, para que o visitante tenha a certeza de que aquela é uma casa de Deus, embora a quantidade de vezes que se fala em ‘diabos’ leve o incauto a pensar exatamente o contrário. Num dos programas mais conhecidos da televisão, repetido diariamente em vários outros canais, constata-se a presença do ‘Deus Aspirina’.

Maléficos e irresponsáveis

Pouco antes de pedir dinheiro, situação em que o pastor em questão é mestre, o dito cujo inicia uma sessão de ‘milagres’ no mínimo estranha. Após ‘ordenar’ que os demônios das doenças abandonem ‘os corpos’ dos doentes, em nome de Deus (embora pareça que Deus seja nada mais nada menos do que um empregado ou serviçal de tal pastor), ele pergunta quem se ‘curou’. Aí se inicia uma tal de cura de dor no ombro, dor no braço, dor na coluna, dor de cabeça, dor… Ou seja, nada mais nada menos do que os ‘milagres’ da aspirina ou de outro analgésico qualquer.

Sinceramente, nos meus 20 anos de medicina, não presenciei nada que não possa ser explicável pela ciência. Isso não quer dizer que não haja milagres – mas não os vi. Obviamente alguns dieão: ‘A culpa é sua, porque não tens fé bastante para vê-los’. O problema é que se eu não obtiver o resultado esperado com um tratamento científico não caberá tal desculpa. A falta de fé é a justificativa para o fracasso. Bela e confortável desculpa…

Pois bem, após a sessão de milagres aspirínicos, tal pastor ‘passa a sacolinha’, cobrando muito mais caro pelas ‘curas’ do que um médico recebe do SUS pelo mesmo serviço, isso incluindo o analgésico. Tenho observado, com temor e indignação, muitos pacientes abandonarem o tratamento por causa desses ‘milagreiros’ de meia tigela. Recordo-me de uma criança diabética, insulino-dependente que um bem-intencionado imbecil, semi-analfabeto, mas treinado por uma ala da igreja católica na arte de ‘passar um ferrinho’ e diagnosticar, tratando em nome de uma tal ‘medicina natural’, quase a matou quando suspendeu a insulina e passou a mandar a paciente tomar chá de ‘pata de vaca’! Se não fosse a intervenção rápida e eficaz de um pediatra, a menina teria morrido, graças ao estímulo de setores da igreja católica a ‘pais-de-santo’, raizeiros e benzedeiras tão maléficos quanto irresponsáveis.

Criminoso asqueroso

Aliás, há uma cultura disseminada de que pai-de-santo cura, pastor cura, padre cura e médico mata. O pior é que esses facínoras travestidos de religiosos não têm responsabilidade legal por seus absurdos crimes, todos ‘bem-intencionados’. O que me permite afirmar que de boas intenções o inferno está cheio. Aproveitando-se do baixo nível cultural do nosso povo, aliado à esperança tresloucada dos desesperados, milhares de entidades e estelionatários enriquecem, enquanto a saúde pública vai ficando cada vez mais pobre. É necessária uma atitude firme e contínua contra esse tipo de charlatanismo que impera em nossos meios de comunicação. A TV é concessão pública, e não pode ser utilizada desta forma que, além de desinformar, coloca a saúde do povo em risco.

Setores da imprensa colaboram para que isso ocorra por omissão e medo, já que, entre as principais redes de televisão e de rádio nacionais, há várias igrejas e ‘pastores’ em sua base de patrocínio e de ‘sublocação’ da concessão pública. Essa vergonhosa agressão ao povo mais humilde e sofrido, roubado duas vezes, tanto na negativa do poder público de repassar os impostos em ações mais amplas de saúde quanto na exploração criminosa, através das ‘dádivas’, ‘contribuições’ etc. que suplantam, em muito, os dízimos devidos a cada igreja.

Tudo bem que isso ocorra em todas as camadas sociais, mas estelionatário que explora a pobreza e a miséria é um tipo de criminoso asqueroso e não terá perdão nenhum, nem aqui nem no céu, pois esses exploradores do corpo sofrido de Jesus e os vendilhões das casas de Deus fazem parte de um dos piores tipos de criminosos, os sanguessugas de Cristo.

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Médico, Alegre, RS