Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Ainda sobre Xuxa

Há notícias de que o depoimento de Xuxa ao Fantástico, onde admitiu ter sido abusada sexualmente quando criança, disparou uma onda de denúncias contra abuso infantil por todo o país. Fiquei com sérias dúvidas de que esse seja o melhor caminho para resolvermos um problema tão complexo. Os jornalistas deveriam repassar a palavra aos especialistas. No meu canto, sinto-me na obrigação de comentar que as crianças têm muitas vezes excesso de imaginação. Suspeito que, na onda de denúncias disparada por Xuxa, podem ser punidos muitos pervertidos, mas também muitos inocentes. O rumoroso caso da Escola Base, ocorrido no início dos anos 1990 em São Paulo, está aí a confirmar tal suspeição.

De qualquer modo, Xuxa voltou à ribalta para confirmar o personagem interessantíssimo que é. Olho para Xuxa e vejo uma boneca, um produto legítimo da Vênus Platinada. Diria que é possível enxergar nela, Xuxa, todos os defeitos e todas as virtudes da TV Globo. Uma rara e perfeita simbiose. Posso desagradar muitos de meus leitores, mas não me furto em dizer que enxergo na Rede Globo muito mais virtudes que defeitos. O Globo News, por exemplo, é meu canal preferido de informações. Ressalvo que usufruo hoje, aos 64 anos de idade, da condição de jornalista experimentado e que sabe consumir informações com olhos argutos e críticos.

O depoimento da “Rainha dos Baixinhos” ao Fantástico foi, digamos assim, comovente, até por percebermos que o personagem, mais uma vez, guardou distância abissal da criatura que ela realmente é fora da televisão. Na TV, o personagem sempre lembrou uma nota de doze dólares. Nada condenável porque um personagem pode representar o que quiser, até uma nota de trinta e um dólares e meio.

Xuxa e as chacretes

Previ, entretanto, que, graças ao depoimento – se verdadeiro ou não é difícil saber porque ela encarnava o personagem –, iria sofrer o mesmo bombardeio de sempre, agora potencializado pelo alcance da internet. Xuxa, o personagem, costuma ser acusada de pecados que não cometeu e poupada dos pecados que realmente cometeu. Acusam-na, por exemplo, de haver insuflado a sexualidade precoce. Pura bobagem. É preciso dizer, inicialmente, que a mídia não tem o poder de criar uma tendência na sociedade. Pode, quando muito, acelerar ou insuflar uma tendência já existente. Mídia é espelho da sociedade.

Falemos primeiro da violência. Há muito tempo, muita gente tem se preocupado com as cenas de violência na mídia, especialmente na TV. Que tal nos lembrarmos do episódio recente da escola do Realengo, no Rio de Janeiro? A realidade, ali, suplantou a mídia em altíssima voltagem. Se a mídia se ocupa da violência é apenas porque a violência está ali instaurada na sociedade. Mídia é espelho, volto a repetir.

O despertar precoce das crianças para a sexualidade é algo que veio na esteira da liberação de costumes que a ditadura militar tentou conter, via censura, nos anos 1960 e 1970. Quando Xuxa explodiu na TV, os seus baixinhos já sabiam mais de sexo do que ela mesma. Há que considerarmos também que antes de Xuxa existiram as chacretes. Comparada a estas, Xuxa sempre lembrou uma freira.

Estagnação do consumo

Mais a mais, no campo da sexualidade precoce, Xuxa ainda reinava na TV quando entrou em cena a internet. A rede mundial veio para deixar as chacretes no chinelo. Ou não será verdade que, com apenas dois cliques no mouse de um computador, qualquer criança, no escondido dos pais, pode ter acesso a centenas de vídeos com o mais genuíno do sexo explícito? A realidade está aí, escancarada. O que é preciso é saber conviver de modo inteligente com ela.

Outra acusação disparada com frequência contra Xuxa: a de ter inoculado nos baixinhos o vírus do mais frenético consumismo. Pecado? A realidade atual nos mostra que não. Escapamos quase ilesos da crise mundial de 2008 graças ao consumo desenfreado. Em segundo mandato, Lula incentivou o consumo o tempo inteiro. O consumo é do bem: produz empregos, distribui renda e serve de anteparo a crises internacionais. Se Xuxa tivesse mesmo o poder de fazer o consumo disparar, deveria ser convocada às pressas por Dilma Rousseff para servir de garota-propaganda do governo em seu esforço de levar o país a consumir mais para poder crescer.

Thomas Friedman, em seu O Mundo é Plano, nos mostra o drama dos países desenvolvidos, onde o consumo estagnou. O mundo tornou-se plano porque o gráfico do consumo não sobe mais, não passa de uma ampla e ameaçadora planície. Como conseguir induzir um alemão a consumir duas salsichas por dia ao invés de apenas uma? Nem Xuxa seria capaz de produzir tal façanha. O consultor empresarial Luiz Marins acha que a estagnação do consumo ainda vai forçar a União Europeia a derrubar suas barreiras às migrações.

Jogada de marketing

E há mais: não foi Xuxa que construiu a tendência do consumismo no mundo infantil. Já era latente. Os seus baixinhos eram na grande maioria filhos de casais dispostos a prover de tudo a seus rebentos – daquilo que pediam e daquilo que não pediam. A publicidade nos programas de Xuxa apenas inspirou os pais na hora de estabelecer o contraponto em relação à agrura que suportaram durante a própria infância.

Sobram os pecados reais de Xuxa. Lembro-me de um deles, famoso: o de ter tornado público, quase numa operação de marketing, o seu projeto de ter um filho na base da “produção independente”. Tinha o direito de fazê-lo? É claro que sim. Tinha o direito de torná-lo público? É claro que não. Com a publicidade que acompanhou todo o caso, milhares de adolescentes foram incentivadas a imitá-la. A gravidez precoce é um problema tão sério quanto o abuso infantil ou a violência contras as mulheres. Que o digam as entidades que dão assistência às adolescentes desgarradas da família.

Quando ministro da Saúde, José Serra divulgou suas preocupações com o caso. Xuxa usou câmeras e microfones de sua criadora para revidar as declarações do ministro. Cometeu assim outro pecado, imperdoável a uma comunicadora: o da arrogância desmedida. As celebridades, de modo geral, deveriam pensar melhor antes de tornarem público um gesto, uma atitude, uma decisão, um posicionamento político. Não têm o direito de agir por impulso. Marília Pera, como exemplo, apressou-se em dar apoio à candidatura de Fernando Collor de Mello. Arrependeu-se mais tarde, depois de ver, é claro, o que o seu candidato aprontou. A pergunta que permaneceu sem resposta é a seguinte: até se arrepender, quantas pessoas ela induziu a votar e apoiar a candidatura de Collor? Foi, por assim dizer, cúmplice de um dos episódios mais sinistros da República.

No mesmo depoimento em que denunciou ter sido abusada na infância, Xuxa comentou seu relacionamento com Pelé e Airton Senna. Tive sempre a impressão de que tudo não passou de jogada de marketing. Afinal, tempos depois, ao revelar o seu desejo de ter um filho por produção independente, mostrou claramente que nunca desejou um namorado ou um marido. Queria apenas um homem que lhe desse um filho. Personagem e criatura às vezes se misturam com tal intensidade que ficamos sem saber qual é um e qual é outro.

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[Dirceu Martins Pio é ex-diretor da Agência Estado e da Gazeta Mercantil e atual consultor em comunicação corporativa]