Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Homicídio jornalisticamente justificado?

Na sexta-feira (22/6) estava zapeando na TV quando esbarrei em algo interessante. Normalmente não assisto o Brasil Urgente, programa da Rede Bandeirantes em que a violência policial é glorificada e os “direitos humanos dos bandidos” são criticados. Mas antes de entrar propriamente no assunto, farei duas considerações prévias.

Primeiro, o uso de força bruta por policiais não é e não poderia mesmo ser legitimado pela legislação brasileira. O Estado tem o monopólio legítimo dos meios de coerção, mas a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção Americana de Direitos Humanos limitam a ação policial nos países que aderiram a estes diplomas internacionais (este é o caso do Brasil). A coerção só pode ser empregada pelo Estado quando isto é indispensável e os agentes estatais não podem exagerar porque diante deles, que são treinados, organizados e fazem parte de instituições com vastos recursos humanos e materiais, os cidadãos são sempre mais fracos. Os policiais respondem pelos abusos que cometem na forma da Lei, caso contrário poderiam agir (e de fato, às vezes agem) como se fossem membros de quadrilhas acima da Lei.

Segundo, não existe distinção entre “direitos humanos dos bandidos” e “direitos dos humanos de bem”, como alguns jornalistas parecem querer. Os “direitos humanos” são atribuídos a todos os seres humanos de maneira indistinta. Para adquiri-los, o homem não precisa fazer nada de especial, basta ter nascido para que seus “direitos humanos” venham à luz. Ninguém pode abusar de seus “direitos humanos” porque não existem humanos “mais humanos” e humanos “menos humanos”. Daí deriva, portanto, que todos nascemos também com a obrigação de respeitar os “direitos humanos” dos semelhantes. Quem não fizer isto estará sujeito às sanções legais, que podem ser de natureza civil e de natureza penal, segundo a gravidade da infração.

O mundo de cabeça para baixo

O Estado tem o direito de punir os criminosos, mas não pode desrespeitar, reduzir ou suprimir seus direitos humanos. O mesmo se aplica aos agentes estatais, que devem sempre agir dentro da Lei e não como se fossem a fonte dela ou, pior, como acima dela estivessem.

Dito isto, podemos passar à matéria jornalística propriamente dita.

A história é banal. Um jovem compareceu a uma delegacia e disse à autoridade policial que reagiu a um assalto. Usando sua arma, ele matou os criminosos e entregou ao delegado as armas que teriam sido usadas contra ele. O delegado o mandou prender, autuando-o por homicídio. Após ser solto, o rapaz contou ao jornalista do Brasil Urgente sua saga. Disse que sua prisão foi injusta e que onde ficou preso não tinha nem colchão. O pai dele informou ao repórter que ficou muito preocupado com o filho porque ele é um bom moço, agiu em legítima defesa e ficou preso com bandidos comuns. O profissional que fez a matéria e o que apresenta o programa se mostraram indignados. Segundo ambos, o mundo estaria de cabeça para baixo, pois enquanto criminosos agem impunemente, os cidadãos de bem estariam sitiados por bandidos e sendo presos pela polícia.

Defesa de uma versão

Quem não ficaria ao lado deste rapaz? Ele se defendeu e não poderia ser tratado como bandido. É verdade, mas também é verdade que ele tirou a vida de seres humanos. Tinha o direito de fazer isto? A princípio, ninguém tem o direito de matar. Eventualmente, entretanto, o homicídio não acarreta punição. Entretanto, a ocorrência de circunstâncias que inocentam o autor de homicídios não pode ser feita sumariamente. Ele disse que estava sofrendo uma tentativa de assalto. Estava mesmo? Os meios que ele utilizou foram realmente proporcionais à ameaça que estava sofrendo? No sistema jurídico brasileiro, a palavra do réu não tem valor de prova absoluta. O rapaz pode ter convencido o jornalista, mas o juiz de Direito que será encarregado de julgar a questão não poderá deixar de examinar o caso sob a ótica dos “direitos humanos” daqueles que morreram no episódio.

 

A existência ou não de legítima defesa é algo que pode, deve e será investigado no processo judicial em que será garantido ao réu amplo direito de produzir provas e de defender-se. Não compete ao delegado, durante o inquérito policial, absolver o réu ou julgar legítima a sua conduta. Tomando conhecimento de um fato definido como crime e sendo conhecido o autor, a autoridade policial tem dever de agir e, se não o fizer, responde pela omissão. Quando não faz uma avaliação adequada da situação, sua decisão pode ser revista pelo Judiciário. Provavelmente foi isto o que ocorreu nesse caso.

Mas e a matéria jornalística? Ela esclareceu todos estes detalhes? Não. Os jornalistas do Brasil Urgente se limitaram a defender a versão da história contada pelo rapaz. Presumindo que ele agiu certo, julgaram absurda sua prisão.

Cheiro do sabão de coco

A decretação de prisão numa situação como esta, porém, não é necessariamente absurda. É verdade que a decisão do delegado foi revogada, mas isto não quer dizer que o réu será absolvido. Afinal, sua culpa ou não somente será avaliada com mais cuidado e provas ao fim do devido processo legal. Mesmo que tenha agido em legítima defesa, ele terá que responder o processo, pois no Brasil não existem bandidos que podem ser sumariamente executados e cidadãos de bem que tenham o direito de ser automaticamente inocentados.

Ao ver a cobertura do fato, entretanto, fiquei com a impressão de que existem “homicídios jornalisticamente justificados”. Os jornalistas do Brasil Urgente inocentaram ao vivo, em cores, em tempo real e com transmissão HD, o entrevistado, acolhendo sua alegação de legítima defesa. Eles não estavam interessados nas nuances do caso ou no respeito dos “direitos humanos dos bandidos”, mas no espetáculo. Que tipo de espetáculo eles produziram? Esta meus caros, é a verdadeira pergunta.

O espetáculo de justiçamento é sempre medonho. Quando ocorre nas ruas deixa marcas indeléveis. Conheci uma menina que assistiu um espetáculo destes em Alcobaça, BA, no princípio da década de 1990. Dois criminosos foram retirados à força da cadeia da cidade, espancados na rua e queimados pela turba incontrolável. A menina, que era filha de uma amiga alcobacence e tinha menos de 10 anos quando assistiu o espetáculo, ficou traumatizada. Anos depois, não podia sentir o cheiro de sabão de coco porque associava o mesmo ao odor daqueles criminosos mortos queimando. A memória daquela cena associava-se automaticamente ao cheiro do sabão de coco e lhe produzia sensações terrificantes.

Sem direito de matar suspeitos

O espetáculo de justiçamento jornalístico não tem cheiro. Mas pode produzir danos igualmente irreparáveis. Matar bandidos parece ser fácil e virtuoso em tese, como querem alguns jornalistas. Na prática, até rende boas matérias jornalísticas e mantém o público vidrado na TV. Mas e as pessoas que estão sendo incentivadas a cometer crimes de sangue para se defender? Como ficarão depois que o espetáculo televisivo acabar e colocarem suas cabeças nos travesseiros? E os delegados e juízes, cuja missão é defender a sociedade da barbárie, como poderão exercer sua autoridade sem o temor de em algum momento sofrer represálias por parte da população ensandecida?

Cuidado e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Quando o Bope matou mais de uma dezena de pessoas ao subir no Morro do Alemão antes do Panamericano, a cobertura foi intensa. No dia dos fatos, os âncoras do Jornal da Globo disseram que todos os mortos eram criminosos. Alguns dias depois, foram obrigados a se retratar dizendo que várias daquelas pessoas mortas não tinham nem passagem pela polícia nem história incontroversa de envolvimento com o tráfico. E mesmo que tivessem, os policiais não têm e não devem ter o direito de matar suspeitos. Ou eles têm o direito de fazer isto porque existem “homicídios jornalisticamente justificados”?

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[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]