Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A seringa de Lívia Marini

Na segunda-feira (18/3), a seringa assassina de Lívia Marini atacou mais uma vez. Num encontro fortuito no elevador de um hotel cinco estrelas em Istambul, Lívia livrou-se da possibilidade de ser denunciada por Rachel e aplicou-lhe a injeção letal no pescoço. A vítima, naquele exato instante, estava falando no telefone celular com a delegada Helô, exatamente para denunciar a grande vilã de Salve Jorge. Não deu tempo. No momento seguinte, as redes sociais entraram em ação. Como pode um hotel de luxo como esse não ter câmeras de vigilância? Se o sinal estava ruim, por que Rachel se dirigiu para o elevador? Todo mundo sabe que elevadores são péssimos para captar sinais de celulares. Lívia Marini é ridícula. Ana Beatriz Nogueira, a Rachel, conseguiu sair da novela.

Ninguém gosta de Salve Jorge. Todo mundo vê Salve Jorge. Pelos comentários feitos sobre a atual novela das oito… Novela das nove, já dizem alguns, mas a expressão “novela das oito” não diz respeito, há muito tempo, ao horário em que a atração é exibida. “Novela das oito” é um gênero. Enfim, pelos comentários, qualquer espectador escreveria melhor que Gloria Perez. Todos sabem os defeitos da trama. Todos sabem como ela deveria ser escrita. Só Gloria Perez não percebe onde errou.

Há algo que admiro na autora e que, sob este aspecto, ela não me decepcionou em Salve Jorge. Gloria Perez é ótima para batizar personagens. Está aí Lívia Marini na pele de Claudia Raia que não me deixa mentir. Ninguém se refere a ela como Lívia, é sempre Lívia Marini. Foi a união perfeita entre nome e sobrenome de uma celebridade que todos conhecem (não, não é uma redundância, pois, hoje em dia, há muitas celebridades que ninguém conhece). É um nome perfeito para celebridade de novela.

Público gostava de não gostar

Salve Jorge não é o melhor trabalho de Gloria Perez. E sempre será difícil para a novelista escrever um “melhor trabalho” depois de O clone e Caminho das Índias. Mas algumas de suas melhores características estão no ar. O tema difícil, o tráfico humano, aparentemente inadequado para uma trama de novela, está aí. E bem desenvolvido, como já foram bem desenvolvidos o transplante de órgãos, a clonagem humana, a saga de crianças desaparecidas. O ambiente exótico calcado na cultura de outro país se repete. Já foi a Índia, agora é a Turquia. E os nomes dos personagens são sempre originais e divertidos: Morena, Pescoço, Delzuite, Lucimar e, é claro, Lívia Marini.

É a Gloria Perez de sempre. Mas, desta vez, sendo vista com uma certa implicância. Lívia Marini mata seus inimigos da mesma maneira que o psicopata Dexter do seriado americano captura suas vítimas: com uma seringa no pescoço. Mas Dexter é cult, e Lívia Marini é cafona. Mesmo implicando com a autora, no entanto, o espectador não deixa de acompanhar a história que ela está criando. A novela das oito ou das nove continua sendo a maior audiência do país. O público adora odiar Gloria Perez. E talvez não adorasse tanto se Salve Jorge não fosse como é.

Outro seriado americano viveu, recentemente, situação parecida. Smash, que ainda não estreou na televisão brasileira, foi lançado no ano passado com pompa e circunstância. Produzido por Steven Spielberg, a ideia era usar a fórmula de Glee, sucesso entre adolescentes, e criar um musical para adultos. A audiência foi às alturas, mas a crítica detonou. Os produtores, então, resolveram atender os anseios dos críticos. Trocaram a equipe de produção, eliminaram as tramas consideradas ridículas, investiram mais na parte musical e estrearam a segunda temporada. A crítica continuou rejeitando, e a audiência despencou. Smash não deve sobreviver a uma terceira temporada. O público gostava de não gostar do programa.

Mais uma seringada

Eu gosto de não gostar de Salve Jorge. Não acompanho a novela com fidelidade. Mas não perco os capítulos-sensação, como aquele em que Morena dá uma surra em Vanda. Ou aquele outro em que Lucimar dá uma surra em Vanda. Ou ainda aquele em que Valesca dá uma surra em Vanda. Fala sério: só Gloria Perez é capaz de criar uma personagem que leva uma surra toda semana. Também não perco os capítulos em que Lívia Marini atua com sua seringa maldita.

Critica-se a novela por ter personagens em excesso, muitos núcleos. Consequentemente, alguns não foram desenvolvidos, o que deixou certos atores sem função. A morte de Rachel seria, no fundo, uma maneira de, a pedido da atriz, tirar Ana Beatriz Nogueira de cena. Não sei, mas Janete Clair, a maior novelista do país, fez isso muitas vezes. Em Janete, o que agora é defeito foi considerado qualidade. Em Irmãos Coragem, por exemplo, talvez o seu maior sucesso, ela temia que a trama, ambientada num garimpo, não caísse no gosto do público. Criou, então, um núcleo urbano. Se o garimpo não desse certo, ela investiria nas cenas na cidade grande. Aconteceu o contrário. O espectador se ligou no garimpo e rejeitou a trama na cidade. Janete não teve dúvidas: eliminou uma série de personagens, transferiu outros para o garimpo e seguiu com a novela. Gloria Perez não fez diferente. Concentrou a novela nos núcleos que tiveram mais aceitação do público, como o da delegada Helô, e praticamente eliminou o que foi menos atraente, como o que acontecia na casa de Leonor (Nicette Bruno). Ana Beatriz Nogueira deu o azar de ganhar um personagem escalado para viver na casa de Leonor. Pediu pra sair. O saldo é positivo: afinal, sua saída nos deu a chance de testemunhar mais uma seringada de Lívia Marini.

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Artur Xexéo é colunista do Globo