Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

‘Reality’ satiriza passividade da sociedade de consumo

Ao lançar “Gomorra” no Festival de Cannes de 2008, a carreira do romano Matteo Garrone como diretor e roteirista completava 12 anos sem grande repercussão internacional. É bem verdade que, no âmbito doméstico, seus longas anteriores – cinco de ficção, dois documentários – pareciam apontar para um bom cronista da vida italiana, atento a dramas sociais. Não era pouca coisa, mas parecia o seu limite.

Para Garrone, a mudança de status – tardia para os padrões habituais do cinema autoral – só veio aos 40 anos. Baseado no livro-reportagem homônimo do jornalista Roberto Saviano, “Gomorra” saiu de Cannes com o Grande Prêmio do Júri. Depois, recebeu sete prêmios David di Donatello, o mais tradicional da Itália, a começar pelos de melhor filme e direção. Sua didática exposição dos laços entre crime organizado, imigração ilegal e empresas multinacionais correu (e impressionou) o mundo.

Quatro anos depois, com “Reality – A Grande Ilusão”, que estreia amanhã [sexta-feira, 26/4] no Brasil, Garrone viveu o teste de fogo a que se submete todo diretor depois do filme que o distingue da multidão. Seria capaz de se manter no mesmo patamar? Cannes julgou que sim, dando-lhe um novo Grande Prêmio do Júri. O maior elogio que se pode fazer ao diretor, no entanto, é o de reconhecer que fugiu das pegadas do longa anterior – nada de filme-denúncia político ou de macroanálise socioeconômica da Europa contemporânea – para se arriscar em outro território, ainda que ao custo de provocar menos impacto.

Esse outro território, no entanto, talvez seja apenas uma ilusão de ótica. Embora mais discreto, com uma trama linear e quase fabular baseada em um só protagonista, “Reality” opera também, a exemplo de “Gomorra”, uma denúncia incômoda de características do nosso tempo. O eixo é a “sociedade do espetáculo”; a referência são os “reality shows” da televisão como emblema de uma sociedade voltada para o consumo, de comportamento passivo, na qual se deixa de viver a própria vida para contemplar, estendido no sofá, a dos outros. Por tabela, a “reality” se torna mais verdadeira do que a realidade.

Luciano (Aniello Arena) é um simpático dono de peixaria, obrigado a complementar a renda familiar fazendo bicos como drag queen em festas e eventos. Como um bom personagem de crônica social italiana, arruma tempo para se dedicar a outros expedientes, que se alimentam da ingenuidade de incautos (velhinhos, em especial) e da fiscalização relaxada do Estado. Apesar disso, é uma figura inofensiva e divertida, ao menos até o momento em que a família o convence, inicialmente contra a sua vontade, a se inscrever no processo de seleção para o programa “Grande Fratello” (a versão italiana do “Big Brother”).

Ali, tem início um lento e perturbador processo de transformação. As testemunhas são os parentes e amigos de Luciano, incrédulos com o que veem, mas quem mais sofre com o constrangimento de acompanhá-lo é mesmo o espectador, ao lado do personagem desde o início do “transe” até a magnífica sequência de encerramento do filme.

Ao conectar a espiral da busca por uma nova identidade ao vazio que todo simulacro de realidade produz, “Reality” lembra que o cinema vive de produzir sentido pelo uso de imagens, e que Garrone, como em “Gomorra”, continua a tratar a câmera como arma contra o conformismo.

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Sérgio Rizzo, para o Valor Econômico