Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Emissoras públicas na terra da Maria Candelária

Em outubro de 1940, o âncora da BBC Bruce Belfrage estava no ar quando mil quilos de explosivos foram atirados num ataque aéreo nazista contra o Broadcasting House. A sede da BBC foi parcialmente destruída e sete pessoas morreram no local. Belfradge interrompeu o noticiário das 9 por alguns segundos, enquanto as bombas faziam estrondo ao caírem nas salas e estúdios vizinhos ao seu. Em seguida, continuou o telejornal, como se nada tivesse acontecido.


O jornalista agiu baseado nas exigências da segurança de guerra e nas normas de sua emissora. Estava prestando um duplo serviço público. Desde novembro de 1936, o serviço de televisão da BBC já havia se consolidado como o primeiro grande modelo de televisão do mundo, seguindo os passos do serviço de radio, que tivera início 14 anos antes. A guerra ainda estava começando e a TV inglesa já dava sinais de maturidade.


A televisão só chegaria ao Brasil mais de uma década depois, em 1950. Ela se instalaria seguindo o modelo de redes privadas que se estabelecera havia pouco tempo nos EUA. Até o final dos anos 1960, emissoras privadas foram criadas no país à razão de uma por ano. Tupi São Paulo, Tupi Rio, Itacolomi… um pouco mais de duas dezenas em menos de duas décadas.


Só no final de 1968 a primeira emissora brasileira não-privada seria instalada, em Recife. Em plena vigência do AI-5, 18 anos depois da chegada da televisão privada ao país e 32 anos após a BBC firmar um conceito de televisão pública que a manteria até hoje como o mais respeitado padrão de excelência de programação televisiva no mundo. Era uma TV universitária, que abriria tardiamente o caminho à instalação de emissoras mantidas por outras universidades, fundações, governos estaduais, governo federal, todas sem qualquer vínculo entre elas, muito menos um projeto conjunto, ou sequer uma cartilha comum de princípios. Chamou-se a isso ‘televisões educativas’.


Do tipo de educação que promoviam, nem é bom falar. O tempo fez com que a imagem de ‘televisões educativas’ ficasse ligada a ações pedagógicas promovidas por senhoras de coque alto, avessas a tudo que possa ser diferente do que elas ensinavam nas salas de aula. O termo foi mais tarde substituído por ‘televisões públicas’. Uma coisa não tem nada a ver com outra, mas ‘televisões públicas’ era um nome melhor, ainda que no que elas fizessem não houvesse nada de público e muito menos de televisão.


O fato é que a chamada televisão pública no Brasil seguiu o caminho inverso ao de suas congêneres européias. Lá, a televisão começou pública e iniciou o processo de privatização 30 anos depois. Aqui, começou privada e a formação das televisões públicas, iniciada no auge da linha-dura dos governos militares, obedeceu na maior parte à lógica da velha marchinha Maria Candelária (de Armando Cavalcanti e Klécius Caldas, para o Carnaval de 1952), cujo projeto de vida é cair na letra ‘o’ – e que historicamente norteia a formação das repartições públicas do país. [Maria Candelária/ É alta funcionária/ Saltou de pára-quedas / Caiu na letra ‘O’, oh, oh, oh, oh/ Começa ao meio-dia/ Coitada Maria/ Trabalha, trabalha, trabalha de fazer dó oh, oh, oh, oh/ A uma vai ao dentista/ As duas vai ao café/ Às três vai à modista/ Às quatro assina o ponto e dá no pé/ Que grande vigarista que ela é.]


Emissoras de ponta


O Ministério da Cultura lançou na segunda-feira (27/11) o I Fórum Nacional de TVs Públicas. Oito grupos de trabalho foram formados e até fevereiro de 2007 deverão gerar um diagnóstico do setor. É inevitável que isso gere desconfiança. O que a televisão pública brasileira menos precisa é o fortalecimento de seu oficialismo. Mas há fortes indícios de que as palavras vazias de sempre – e os aziagos chavões do momento – cedam espaço aqui a um autêntico esforço para recuperar a grande dívida das televisões públicas com a sociedade que paga as suas contas. Porque este é um fórum plural no qual existe uma agenda de discussão das televisões públicas em patamares relevantes (programação, financiamento, modelo de negócios etc). Pode não dar em nada. Mas, desde a implantação das televisões públicas no país, nada de tão abrangente foi tentado.


Conceituar o que seja uma televisão pública já seria muito. Ela é, no Brasil, entendida de várias maneiras. Nenhuma delas contém na fórmula 1 grama de nobreza. Televisão pública é lida ora como uma televisão de serviço, ora como um simples porta-voz do poder político que a mantém. Tudo é televisão pública: emissoras legislativas, emissoras universitárias, até mesmo televisões comunitárias, para não falar das que ocupam as freqüências abertas que foram alocadas às emissoras públicas e que deveriam constituir, em cada estado, um serviço público complementar às outorgas privadas.


A Constituição de 1988 define a complementaridade entre os sistemas de televisão privados, públicos e estatais. Televisão privada todo mundo sabe o que é. Estatal também – sente-se isso no bolso e na cabeça todos os dias. No que diz respeito à televisão pública, existem numerosos modelos em vigência no mundo. Muitos são bem conhecidos. Na Grã-Bretanha e em outros países europeus, os proprietários de aparelhos de TV pagam compulsoriamente para manter as suas televisões públicas (taxa que chega, na Grã-Bretanha, ao equivalente a 35 reais por mês). É assim, por exemplo, que a BBC arrecada o equivalente a 4 bilhões de dólares todos os anos. Nos EUA, a PBS, principal rede pública, sobrevive dos donativos voluntários de pessoas físicas e de empresas. Uma e outra produzem e exibem grande parte do que de melhor se faz em televisão neste planeta.


Já no Brasil, televisão pública é vista como sinônimo de coisa precária, malfeita, não-competitiva. Se as pesquisas encomendadas pelas emissoras públicas dizem outra coisa, há razões para que se desconfie das pesquisas. A imagem dessas TVs deveria ser a de emissoras de ponta, de qualidade e influentes. Não é o povão que está conspirando contra a televisão pública. A má notícia é que ela todos os dias faz por merecer a fama que tem.


Espaço da politicagem


Interessa às três partes deixar as coisas como estão: aos governos, que continuam tendo um instrumento de propaganda (ainda que pouco visto) feito com o dinheiro do contribuinte; às emissoras privadas, para as quais é bom que as televisões públicas recolham-se às suas insignificâncias, conheçam o seu lugar e fiquem onde estão; e às próprias televisões públicas, que transformadas em repartições constituem-se em depositários de empregos e posições que serão tão mais estáveis quanto mais estiverem esquecidos.


Para uma quarta parte, justamente a que paga a conta, a situação não poderia ser pior. Com as exceções de praxe, a televisão pública é o abrigo da ideologia imitativa que repete e dilui de forma grotesca o que já é ruim na televisão comercial. Por que a televisão pública não é o espaço da ousadia e da experimentação que move a criação televisiva, como de resto toda forma de criação humana? Essa é uma pergunta que o Fórum Nacional de TVs Públicas, se tiver juízo, poderia se esmerar em responder.


É a televisão pública que deveria zelar pela diversificação da produção, encorajando a pluralidade e apostando nos novos formatos. Em grande medida, no entanto, ela simplesmente repete o modelo de produção viciado que faz da televisão comercial brasileira um caso único no mundo de concentracionismo e de confusão entre produtor e exibidor.


Esforços autênticos têm sido feitos em contrário por muitas administrações que passam pelas emissoras públicas, mas seus resultados às vezes são bizarros. Identificar essa trava só perde em importância para a necessidade de criar mecanismos de estímulo à renovação – em oposição à acomodação, à mesmice burocrática – dentro da televisão pública brasileira. O estímulo à produção diversificada e de qualidade é o único pressuposto capaz de justificar a existência de televisões públicas. Se esta não for uma posição firme e inalienável, é difícil explicar a aplicação de 1 centavo que seja da sociedade brasileira na manutenção de vários sistemas públicos de televisão que, em seu conjunto, não oxigenam a inteligência do espectador nem estimulam a complementaridade (intelectual, que seja, para ficar no mínimo) com a televisão comercial brasileira (que, salvo também as exceções de praxe, é ruim, grosseira, antiga, embotadora).


Ao reproduzir e amplificar a baixíssima qualidade da televisão comercial brasileira, tais sistemas cometem vários crimes, o menor dos quais é produzir e veicular má televisão. Assim, não é a televisão pública que é segregada pelos outros à sua insignificância; é ela que faz questão de se mostrar insignificante, de ser o espaço da politicagem quando poderia ser o templo (a capela, vá lá) da inteligência e da criação.


Duas alternativas


Se as raízes disso tudo remontam ao modelo de organização da televisão brasileira desde 1950, e se não se pode substituí-lo, deve-se, com certeza, aperfeiçoá-lo. O serviço público no Brasil é deficiente em muitos outros aspectos. No tocante à televisão, pode-se encorajar por muitas formas um serviço mais digno.


Isso depende de grandes disputas partidárias ou governamentais? Quando mais depender, menos chance terá a televisão pública brasileira de se tornar uma televisão de verdade. Em 1984, em plena Guerra das Malvinas, a primeira-ministra Margaret Thathcher queixou-se do que considerou uma cobertura tendenciosa da BBC em favor dos argentinos. Nove anos depois, em julho de 2003, o suicídio do cientista David Kelly transformou-se num outro bom espelho das relações entre a rede pública e o governo britânico. Kelly foi identificado pelo Ministério da Defesa como a fonte da revelação feita pelo repórter Andrew Gilligan, da BBC, de que o relatório apresentado pelo primeiro-ministro Anthony Blair havia sido modificado pelo porta-voz do Governo, Alastair Campbell, para induzir o Parlamento a aprovar a invasão do Iraque.


O conselho administrativo da BBC determinou que fosse feita uma auditoria independente sobre a imparcialidade da rede, que acabou sofrendo uma reestruturação de sua direção. O modelo da BBC não pode ser importado para o Brasil e nenhum de nós nasceu na Inglaterra. Mas o Brasil ainda é melhor do que a televisão pública que tem.


Se aceitarmos que cada país tem a televisão pública que merece, só haverá duas alternativas: ou melhoramos a nossa televisão pública, ou pioramos o Brasil.

******

Jornalista