Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Época




ALCKMIN & OPUS DEI
Eliane Brum e Ricardo Mendonça


O governador e a Obra


‘O governador paulista, Geraldo Alckmin, é um dos políticos brasileiros com
ligações mais estreitas com a Obra. Elegeu Caminho, o guia escrito pelo fundador
Josemaría Escrivá, como seu livro de cabeceira. ‘Acostuma-te a dizer que não’ é
um dos ensinamentos que mais aprecia, conforme contou em entrevistas à imprensa.
Um popular sacerdote do Opus Dei, o padre José Teixeira, foi seu confessor. Nos
últimos anos Alckmin tem recebido formação cristã no Palácio dos Bandeirantes de
um influente numerário, o jornalista Carlos Alberto Di Franco. ‘Laboriosidade’
foi o tema de um dos últimos encontros.


A reunião é chamada informalmente de Palestra do Morumbi, numa alusão ao
bairro onde se localiza a sede do governo do Estado de São Paulo. Alckmin e um
grupo de empresários, advogados e juristas recebem preleções de cerca de 30
minutos sobre virtudes cristãs, seguidas de uma troca de impressões. O encontro
periódico, realizado à noite, começou numa sala reservada do palácio e depois
foi transferido para a ala residencial.


A idéia, segundo Di Franco, surgiu de uma conversa do governador com o padre
Teixeira. Alckmin aproximou-se do sacerdote da Obra anos atrás por orientação de
sua prima em primeiro grau, a numerária Maria Lúcia Alckmin – que, por
coincidência, tem o mesmo nome da primeira-dama. ‘Ele me ligou um dia, quando
ainda era vice-governador, e perguntou se eu conhecia um sacerdote com quem
pudesse se confessar. Eu indiquei o padre Teixeira’, conta Maria Lúcia. O
religioso promoveu a amizade entre Alckmin e Di Franco. Um dos participantes do
encontro, o desembargador aposentado e professor de Direito da USP Paulo
Fernando Toledo, diz que o governador tucano é um dos ‘alunos’ mais aplicados:
‘Ele toma nota de tudo’. Outro membro do grupo, José Conduta, dono da corretora
Harmonia, relata que Alckmin não faltou a nenhuma reunião, mesmo quando
disputava a reeleição, em 2002. ‘Me surpreendia o fato de ele encontrar agenda’,
comenta.


Entre os membros do Círculo, como é chamado o encontro, estão João Guilherme
Ometto, vice-presidente da Fiesp, Benjamin Funari Neto, ex-presidente da
Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica, e Márcio Ribeiro,
ligado à indústria têxtil. Todos são católicos praticantes e alguns deles
colaboradores da Futurong – obra social idealizada pelo padre Teixeira que
atende 285 crianças e adolescentes na periferia de São Paulo.


Os laços do governador com o Opus Dei iniciaram-se com a família. Seu tio,
José Geraldo Rodrigues de Alckmin (1915-1978), ministro do Supremo Tribunal
Federal indicado ao cargo pelo então presidente, general Emílio Garrastazu
Médici, foi o primeiro supernumerário do Brasil. Mas foi o pai do governador,
Geraldo José, quem lhe trouxe, pela primeira vez, um conselho extraído do
Caminho. Alckmin carrega o bilhete com o ensinamento número 702 de Escrivá na
carteira há quase 30 anos. O pai não pertencia ao Opus Dei, mas à Ordem Terceira
de São Francisco. Quando era prefeito de Pindamonhangaba, em 1978, data do
cinqüentenário do Opus Dei, Alckmin homenageou Escrivá batizando uma rua da
cidade com seu nome.


Primo do governador, o ex-numerário José Geraldo Alckmin (os nomes José
Geraldo e Geraldo José são repassados a cada geração) diz que a ligação se
iniciou com a necessidade de anulação do primeiro casamento de dona Lu Alckmin.
‘Ela casou-se e foi para Londres com o marido. Quando chegou, descobriu que ele
vivia numa comunidade hippie. Voltou para o Brasil e namorou meu primo’, conta.
‘Como meu tio é muito católico, queria um casamento religioso. Foi aí que entrou
o Opus Dei, para obter a anulação.’ A prima Maria Lúcia nega que a Obra tenha
intercedido junto ao Vaticano. ‘Foi um reconhecimento de nulidade do matrimônio
e não vejo nenhuma possibilidade de o Opus Dei ter definido isso’, afirma.
Alckmin e dona Lu casaram-se em 16 de março de 1979.


ÉPOCA solicitou uma entrevista com o governador sobre sua relação com o Opus
Dei, por meio de sua assessoria, repetidas vezes. A primeira foi há quatro
semanas. Não obteve resposta. Na entrevista ao programa Roda Viva, da TV
Cultura, em dezembro, no qual Alckmin anunciou publicamente que era candidato à
Presidência, o editor de ÉPOCA Guilherme Evelyn perguntou sobre sua ligação com
a Obra. O governador disse apenas que seu tio era do Opus Dei e seu pai
franciscano. Em seguida, declarou-se amigo do rabino Henry Sobel e fez uma
preleção sobre preconceito e pluralidade religiosos.’




***


Entrevista com a professora universitária Maria Lúcia Alckmin


‘A professora universitária Maria Lúcia Alckmin tornou-se numerária aos 18
anos. Declara-se absolutamente feliz com sua escolha. Como todo membro do Opus
Dei, pensa com a Igreja mesmo nos assuntos mais polêmicos. Confira.


ÉPOCA – Por que a senhora é contra a contracepção artificial?


Maria Lúcia – Quando se abre uma fresta em relação ao valor da vida, atrás
dela vem uma avalanche. Existem métodos de contracepção natural absolutamente
confiáveis. O objetivo da contracepção artificial é conceber quando não
atrapalha.


ÉPOCA – Deveria atrapalhar?


Maria Lúcia – O triste é achar que um filho atrapalha. Quando se evita o
filho pelo bem dele, porque os pais não têm condições de educar, é correto. Mas,
quando é simplesmente porque não quer, é egoísmo.


ÉPOCA – Mas se a razão é correta, como a senhora diz, qual é a diferença
entre usar pílula ou tabelinha?


Maria Lúcia – Há uma exclusão de Deus no método artificial. No natural você
diz: ‘Jesus, vou botar os meios para evitar, não vou ter relação nos dias
férteis, mas se for sua vontade que venha um filho para mim, amém’.


ÉPOCA – No método artificial Deus não consegue interferir?


Maria Lúcia – Consegue. Conheço um monte de filho de métodos artificiais.


ÉPOCA – E o divórcio, a senhora é contra?


Maria Lúcia – Sou a favor da fidelidade matrimonial. Nunca vi uma pessoa se
separar sem ficar com marcas para sempre.


ÉPOCA – A senhora é a favor de um só casamento. E se houve erro na
escolha?


Maria Lúcia – Sou a favor de que não se erre.


ÉPOCA – E o que a senhora acha do sexo consensual, apenas por prazer, fora do
casamento?


Maria Lúcia – Deus não criou o sexo com essa finalidade. Deus é o dono da
máquina de lavar roupa.


ÉPOCA – Máquina de lavar roupa?


Maria Lúcia – O ser humano. Deus nos criou com manual de
instrução.’




***


Ligações poderosas


‘Carlos Alberto Di Franco, 60 anos, é um dos numerários mais influentes e bem
relacionados do Opus Dei. Representante no Brasil da Escola de Comunicação da
Universidade de Navarra e diretor do Master em Jornalismo, um programa de
capacitação de editores que já formou mais de 200 cargos de chefias dos
principais jornais do País, é citado no livro Opus Dei – Os Bastidores como o
executor da política da Obra para a mídia do Brasil e na América Latina. Nos
últimos anos, tem feito periodicamente uma preleção sobre valores cristãos na
ala residencial do Palácio dos Bandeirantes a convite do governador Geraldo
Alckmin (confira matéria na página xx). O encontro, apelidado de `Palestra do
Morumbi´, reúne um seleto grupo de empresários e profissionais do Direito, entre
eles o vice-presidente da Fiesp, João Guilherme Ometo. Na sede do Master, em São
Paulo, em cujos andares superiores funciona o centro da Obra onde vive, Di
Franco deu a seguinte entrevista a Época.


ÉPOCA – A partir do final dos anos 80 a Universidade de Navarra, que é do
Opus Dei, passou a dar cursos nas redações brasileiras. Como surgiu essa
estratégia?


Carlos Alberto Di Franco – Vários professores de lá participaram de um
seminário no Rio e chamaram atenção pela sua visão de Jornalismo. Esse foi o
início de um trabalho não de universidade, mas de consultoria de alguns
profissionais que também são professores em Navarra. Mais recentemente Navarra
montou uma empresa de consultoria que atualmente está sendo reestruturada, e eu
tenho uma empresa e contrato consultores de Navarra e também daqui.


ÉPOCA – O Master em Jornalismo é uma estratégia do Opus Dei para influenciar
a imprensa brasileira e da América latina?


Di Franco – Absolutamente nada a ver. É um trabalho profissional meu. A única
coincidência é que Carlos Alberto Di Franco é do Opus Dei. A imprensa tem
suficiente discernimento e filtros próprios para se deixar submeter a qualquer
coisa deste tipo.


ÉPOCA – O senhor é numerário do Opus Dei, é representante da Escola de
Comunicação da Universidade de Navarra, que é do Opus Dei, o Master traz
professores de Navarra que também são numerários, mas o senhor afirma que não há
nenhuma estratégia do Opus Dei em influenciar a imprensa através de um curso de
formação de editores?


Di Franco – Muitos professores de Navarra que vêm não são do Opus Dei. O
Master é um programa técnico de capacitação de editores e não de Religião. O
Master tem uma identidade cristã? Claro. Quando eu abro o Master, a primeira
coisa que eu faço é dizer que o centro conta com serviço de capelania entregue à
prelazia do Opus Dei. Isso implica numa série de serviços de atendimento
espiritual para quem queira recebê-los. Deixo absolutamente claro o que acontece
aqui. O prestígio do Master não depende do número de gotas de água benta, mas de
sua qualificação profissional.


ÉPOCA – Quantos professores tem o Master e, destes, quantos são do Opus
Dei?


Di Franco – Onze fixos, seis são da Obra.


ÉPOCA – São Escrivá disse que era preciso embrulhar o mundo em
papel-jornal…


Di Franco – Qualquer pessoa que pense dois minutos percebe que os meios de
comunicação são um poderoso facho para o bem e para o mal. Essa preocupação de
evangelização tendo em conta os meios de comunicação social é legítima. Mas você
poderá difundir a mensagem cristã não com água benta e nem metendo-se a montar
estruturas piegas, mas atuando na sua atividade profissional. Estou convicto de
que se o mundo tiver mais cristãos ou gente comprometida com sua fé será um
lugar melhor.


ÉPOCA – O senhor publicou um artigo no jornal O Estado de S.Paulo criticando
o Código da Vinci, um livro de ficção que mostra o Opus Dei como uma seita capaz
de assassinar para alcançar seus objetivos. O senhor assina como jornalista e
professor de ética. O senhor não acha que deveria ter informado ao leitor que é
um numerário?


Di Franco – Não, porque não acrescenta nada. Na mídia todo mundo sabe.


ÉPOCA – O senhor acredita que todos os leitores do jornal sabem?


Di Franco – Todos os leitores não, mas eu não sei o que ser membro do Opus
Dei acrescenta ao meu currículo. O que eu fiz foi uma análise do Dan Brown
mostrando a sua desonestidade intelectual que qualquer jornalista poderia fazer,
budista ou ateu.


ÉPOCA – Poderia. Mas o senhor não acha que a informação de que quem criticava
um livro contra o Opus Dei era alguém do Opus Dei teria sido relevante para o
leitor?


Di Franco – Eu fiz uma crítica técnica e não movida por razões
religiosas.


ÉPOCA – Como começaram as `palestras do Morumbi´, que acontecem na última
quarta-feira do mês, no Palácio, com o governador Geraldo Alckmin e um grupo de
empresários e profissionais do Direito?


Di Franco – Não é uma reunião regular, depende das agendas. O governador é
cristão, muito católico. Nesta reunião tratamos temas relacionados a práticas ou
virtudes cristãs.


ÉPOCA – De quem partiu essa idéia?


Di Franco – Nasceu de uma conversa do governador com um sacerdote da Obra com
quem ele tem direção espiritual periódica.


ÉPOCA – O Padre (José) Teixeira, confessor do governador?


Di Franco – Isso, o Padre Teixeira. Aí eu e o governador conversamos sobre a
melhor maneira de fazer e sobre quem participaria. O grupo é formado por amigos
comuns, todos católicos. Eu sou o palestrante. Uma coisa rápida, meia-hora, um
cafezinho. A última foi em agosto ou setembro. Depois teríamos outra, mas eu não
pude. Agora ele entrou em campanha. Acredito que no final de janeiro
combinaremos a próxima.


ÉPOCA – Essas palestras são pagas?


Di Franco – Não é um trabalho profissional, é uma atividade de formação
cristã.


´Qualquer pessoa que pense dois minutos percebe que os meios de comunicação
são um poderoso facho para o bem e para o mal´


ÉPOCA – O senhor não acha que a proibição de ir ao cinema, teatro ou estádio
de futebol conflitua com seu trabalho de jornalista?


Di Franco – Para mim nunca foi problema. Não é que não pode, a expressão está
mal colocada. Não vai ao cinema porque não quer ir ao cinema. Os numerários
vivem, voluntariamente, uma série de abstenções em função de sua entrega como
numerários.


ÉPOCA – Como o senhor faz com o cilício?


Di Franco – O cilício é uma mortificação corporal ultratradicional na Igreja.
Se você falar com qualquer pessoa que viva o cristianismo é a coisa mais
corriqueira e comum.


ÉPOCA – O senhor usa, duas horas por dia?


Di Franco – Sim, como qualquer numerário.


ÉPOCA – Quando o senhor está com o cilício se concentra no sofrimento de
Cristo?


Di Franco – Essa pequena mortificação você oferece por várias intenções. A
partir de hoje vou oferecer para você.


ÉPOCA – Não é necessário.


Di Franco – Como colega. O incômodo se oferece.


ÉPOCA – É muito difícil o celibato?


Di Franco – Qualquer pessoa tem desejo, é normal. Eu sinto atração pelas
mulheres, claro que sinto, sobretudo pelas bonitas.


ÉPOCA – O senhor é virgem?


Di Franco – Você está entrando em território perigoso. Mas sou, se quer saber
sou.’




***


A vida íntima do Opus Dei


‘Os numerários têm de usar o cilício duas horas por dia, no alto da coxa
(como mostra a imagem acima). A mortificação evoca o sofrimento de Cristo na
cruz. Disse o fundador da Obra: ‘Trata o teu corpo com caridade, mas não com
mais caridade que a que se tem com um inimigo traidor’


Quando era do Opus Dei, Antonio Carlos Brolezzi foi obrigado a usar um
macacão antimasturbação. O equipamento se destinava a combater a ‘doença’ que
seu confessor diagnosticou como ‘erotismo mental’. Tratava-se de uma calça jeans
e uma camisa de flanela costuradas uma na outra e vestidas de trás para a frente
com o objetivo de impedir o jovem de 20 anos de alcançar a parte mais íntima de
sua anatomia. Brolezzi, hoje um bem casado professor do Instituto de Matemática
e Estatística da Universidade de São Paulo, tem se dedicado a narrar em tom
confessional as lembranças sexuais de uma década dentro da poderosa prelazia do
papa.


Pela primeira vez no Brasil, dissidentes retiram o manto de silêncio que
envolve a ‘Obra de Deus’ (em latim, Opus Dei)e dedicam-se hoje a exibi-la em
praça pública – alguns deles com uma sanha digna daquelas ex-mulheres que, na
recente crônica política do país, enlamearam a imagem de figurões da República.
Nada podia ser pior para uma instituição que usa a discrição como estratégia. A
vida íntima do Opus Dei está sendo devassada. Dividido em duas partes –
‘Memórias sexuais de um Numerário’ e ‘Manual do Ex-Numerário Virgem’ -, o livro
de Brolezzi deverá ser o próximo míssil editorial lançado contra a
ultraconservadora organização católica.


Os ‘numerários’ a que se refere o livro são a espinha dorsal da Obra: os
leigos celibatários que vivem nos centros da instituição e cumprem um ritual
diário de rezas e mortificações. Já os supernumerários podem casar, ter filhos e
patrimônio próprio. Na Espanha, onde o movimento foi fundado em 1928, já existe
uma espinhosa bibliografia com relatos de ex-membros. No Brasil, porém, onde o
Opus Dei só aportou no fim dos anos 50, a organização havia conseguido manter
seus adeptos e suas práticas em segredo, obediente ao figurino pregado pelo
fundador, Josemaría Escrivá de Balaguer (1902-1975). Em Caminho, o guia do Opus
Dei, Escrivá enfatiza: ‘O desprezo e a perseguição são benditas provas de
predileção divina, mas não há prova e sinal de predileção mais belo do que este:
passar oculto’. Agora esse ideal tornou-se inalcançável também no maior país
católico do mundo.


A declaração de guerra, no fim de outubro, foi o lançamento do livro Opus Dei
– Os Bastidores (Verus Editora), escrito por três dissidentes da Obra. Um deles,
Jean Lauand, professor da Faculdade de Educação da USP, havia vivido 35 anos
como numerário. Lauand era uma das figuras mais populares da ordem até
abandoná-la, há dois anos. Conhece como poucos sua atuação no Brasil. Ao
deixá-la, tornou-se uma pedra no meio do caminho da obra de Escrivá.


O segundo ataque foi lançado pela mãe de um numerário, Elizabeth Silberstein.
Usando o apelo de uma mãe em luta para resgatar o filho das ‘garras da seita’,
ela escreveu e lançou em dezembro o livro Opus Dei – A Falsa Obra de Deus –
Alerta às Famílias Católicas. A publicação, bancada por ela, copia a estrutura
de um manual para pais que tiveram seus filhos seqüestrados pelas drogas. Ao
Opus Dei é reservado o papel de traficante. O quinto capítulo, por exemplo, é
intitulado ‘Alerta: meu filho foi captado por eles! O que posso fazer?’.


As denúncias poderiam ser apenas uma daquelas constrangedoras brigas de
família se o Opus Dei não fosse a única prelazia pessoal do papa – e a Igreja
Católica a mais poderosa instituição religiosa do Ocidente. Desde o lançamento
em 2003 do best-seller de Dan Brown O Código Da Vinci (mais de 40 milhões de
exemplares vendidos), a Obra vive sob incômodos holofotes. No enredo, a
organização é capaz de cometer assassinatos para impedir a revelação de verdades
indesejáveis sobre Jesus. O fato de ser uma história de ficção não impediu
arranhões profundos na imagem do Opus Dei. Para piorar, o filme baseado no livro
estreará em maio, com Tom Hanks no papel principal e vocação de blockbuster. O
momento, portanto, é propício para os membros da prelazia evocarem o ensinamento
do fundador: ‘Não pretendas que te compreendam. Essa incompreensão é
providencial: para que o teu sacrifício passe despercebido’.


No Brasil, a reação dos dissidentes organizou-se a partir da criação de um
site na internet, o www.opuslivre.org – quartel-general virtual em que
ex-adeptos trocam confidências e dicas de ‘sobrevivência’. Antonio Carlos
Brolezzi conta que quando recebeu o primeiro e-mail do site teve uma tremedeira.
‘Tive pesadelos e disse que não queria mais receber aquele tipo de
correspondência’, conta. ‘Responderam-me que tudo bem, mas que havia chegado a
hora de botar a boca no trombone e exorcizar os fantasmas. Antes, quem saía da
Obra ficava isolado. Com a internet as pessoas passaram a conversar. Parei de
tremer e decidi escrever o livro.’


Numerários influentes, como o jornalista Carlos Alberto Di Franco, enfrentam
o fenômeno com o estoicismo pregado por Escrivá. ‘A campanha difamatória é
dolorosa, mas ao mesmo tempo será boa para a Obra no Brasil porque é o sinal da
cruz de Cristo’, afirma Di Franco. ‘A contradição, a calúnia e a difamação
sempre tiveram um papel na história da Igreja. Não há cristianismo sem
cruz.’


Dom Geraldo Majella Agnelo, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, disse a ÉPOCA que, se algum membro da prelazia procurar a CNBB com
denúncias de violação de direitos humanos, ele encaminhará o assunto à Santa Sé.
‘Como instituição, o Opus Dei foi aprovado. Mas, se há erros, aí é diferente.
Eles devem ser apontados e comprovados para ser julgados por autoridades
competentes.’ O escritório de informação do Opus Dei no Brasil, em resposta por
escrito, afirma que a Obra já havia passado pela experiência de ser criticada
por ex-membros em outros países. ‘Ainda que a imensa maioria dos que se
aproximam das atividades apostólicas e formativas do Opus Dei conserve sempre um
enorme carinho e agradecimento, não é de estranhar que ocorram algumas
exceções’, diz João Gustavo Racca, do escritório brasileiro.


Erra quem vê o Opus Dei como um entre tantos movimentos católicos
conservadores, como Arautos do Evangelho, TFP e Focolare. Desde que João Paulo
II a ungiu com o status de prelazia pessoal, em 1982, a Obra tornou-se
oficialmente corpo e sangue da Igreja. Prevista pelo Concílio Vaticano II
(1962-1965) e incorporada pelo Código de Direito Canônico, essa nova figura
jurídica garantiu ao Opus Dei um duplo privilégio. Por um lado, espalha-se pelo
mundo sob o escudo da tradição milenar da Igreja de Roma. Por outro, é
independente dos bispos e dioceses. A Obra só obedece ao prelado, cargo
vitalício hoje ocupado por dom Javier Echevarría. E ele só presta contas ao
papa.


Dentro do Vaticano, o Opus Dei incomoda os cardeais mais progressistas, que
assistiram alarmados às demonstrações de entusiasmo de João Paulo II. A
canonização do fundador da Obra aconteceu em tempo recorde para os padrões da
Igreja, apenas 27 anos após sua morte. Bem diferente, por exemplo, do caso de
José de Anchieta, cuja patente de santo é uma causa antiga dos brasileiros: o
jesuíta morreu em 1597, mas só se tornou beato em 1980 e não há estimativa de
quando possa virar santo. Antes da canonização, Escrivá era uma figura
controversa. Jesuítas espanhóis o acusavam de criar uma ‘maçonaria dentro da
igreja’ e até de promover ‘uma nova heresia’.


Bento XVI é mais sóbrio na exposição de seus afetos que seu antecessor, mas a
obediência dos membros do Opus faz da instituição um aliado valioso em um mundo
onde a maioria dos fiéis prefere escolher as próprias opiniões. ‘Obedecei, como
nas mãos do artista obedece um instrumento – que não se detém a considerar por
que faz isto ou aquilo – certo de que nunca vos mandarão coisa que não seja boa
e para toda a Glória de Deus’, aconselha Escrivá.


Em Opus Dei – Um Olhar Objetivo para Além dos Mitos e da Realidade da Mais
Controversa Força da Igreja Católica, o jornalista especializado em Vaticano
John Allen Jr. compara a Obra a uma Guiness Extra Stout. Como a tradicional
cerveja irlandesa, em um mercado repleto de produtos diet, light e até sem
álcool, o Opus Dei é um reduto de tradição em meio a um catolicismo que, desde o
Concílio Vaticano II, tomou vários atalhos em sua vivência cotidiana. Seu livro,
lançado no fim de 2005, ainda sem tradução no Brasil, é o representante mais
recente de uma ampla bibliografia destinada a produzir um retrato do Opus Dei
isento de paixões. Como a cerveja preta e extra-forte, a organização sempre
terá, segundo o autor, um número fiel de seguidores para os quais representa uma
âncora irremovível num mundo movediço.


Quem pertence ao Opus Dei não tem dúvidas nem relativismos numa sociedade
povoada por ambos: pensa com a Igreja e vive como o papa manda. ‘A Igreja
Católica não é uma democracia’, diz a numerária Maria Lúcia Alckmin. Para
membros da Obra, parte significativa dos católicos não passa de ‘católicos de
censo’ – que servem para expandir as estatísticas, mas seguem apenas as crenças
pessoais. Em Caminho, Escrivá demonstra desprezo com relação a essa humanidade
supostamente sem ideal: ‘Que conversas! Que baixeza e que… nojo! – e tens de
conviver com eles, no escritório, na universidade, no consultório… no
mundo’.


Estima-se que a Obra tenha milhões de cooperadores de doutrinas variadas e um
patrimônio de US$ 2,8 bi


Com apenas 85 mil seguidores – 1.700 no Brasil -, o Opus Dei é irrelevante do
ponto de vista quantitativo. Mas seus admiradores são estimados na casa dos
milhões. Em 1950, num lance ousado, Escrivá conseguiu inédita autorização do
Vaticano para aceitar cooperadores (leia-se financiadores) não-católicos e
não-cristãos. Assim, a Obra tem apoiadores espalhados pelo mundo das mais
variadas doutrinas – inclusive aqueles que nem sequer acreditam na existência de
Deus. Além de aumentar o poder de penetração do movimento nas diversas
instâncias da sociedade, os cooperadores representam uma boa fonte de recursos.
O vaticanista Allen estima o patrimônio da organização em US$ 2,8 bilhões –
pouco se comparado ao da Igreja nos Estados Unidos (US$ 102 bilhões), muito se o
parâmetro for a quantidade de membros. Cada numerário é obrigado a deixar
salário e patrimônio para o Opus Dei. ‘Quando completei cinco anos na Obra, tive
de lavrar um testamento deixando minha herança para a instituição’, conta o
ex-numerário David Fernandes, engenheiro do Instituto Tecnológico de Aeronáutica
(ITA). ‘Quando saí, não me devolveram nada, mas acredito que não tentem me tomar
as coisas. Se a Obra é tão boa, por que não há uma plaquinha na frente de cada
centro dizendo o que são?’


A grande força do Opus Dei é sua proposta de ‘santificação no meio do mundo’.
Escrivá construiu a biografia para tornar-se ‘o santo do cotidiano’: ‘elevar o
mundo a Deus e transformá-lo a partir de dentro’. Em lugar de padres e freiras
confinados em conventos ou dioceses, o exército de leigos da Obra vive em
centros e cumpre o celibato, mas atua em postos estratégicos na sociedade como
peças de uma engrenagem. Como diz Escrivá: ‘Que preocupação há no mundo por
mudar de lugar! Que aconteceria se cada osso, se cada músculo do corpo humano
quisesse ocupar um posto diferente do que lhe compete? Não é outra a razão do
mal-estar no mundo. Persevera no teu lugar, meu filho; daí, quanto poderás
trabalhar pelo reinado efetivo do Senhor’.


A Obra tem 85 mil membros no mundo. Destes, 83 mil são leigos e 55%
mulheres


O numerário começa por obedecer ao ‘plano de vida espiritual’ com uma lista
de obrigações diárias: duas orações mentais de meia hora, cinco minutos de
leitura do Evangelho e dez de leitura espiritual, reza do terço, missa, comunhão
seguida por dez minutos de ação de graças, meditação dos mistérios do rosário,
reza das preces da Obra, exames de consciência particular e geral, reza de três
ave-marias com os braços em cruz pedindo a castidade antes de dormir, aspersão
de água-benta na cama para afastar as tentações do demônio. Uma vez por semana
encontra-se com o diretor espiritual para uma ‘conversa fraterna’. Nela, nada
pode ser escondido. A etiqueta manda iniciar pelas revelações mais vergonhosas,
obedecendo ao princípio da ‘sinceridade selvagem’. ‘Além de tudo isso, eu ainda
ensinava na universidade. Voltava tarde e tinha de preparar aulas. Comecei a
apresentar sintomas psicológicos estranhos, entrava em pânico’, conta um
engenheiro que deixou a Obra em novembro, depois de 24 anos. ‘Pensei que
acabaria morrendo se continuasse ali. Apavorado, fiz minhas malas e fui para um
hotel.’


A liberdade religiosa, o direito de fazer o que bem entende com seu corpo e a
livre manifestação são valores indiscutíveis. Quem pertence ao Opus Dei acredita
que beijar o chão ao acordar e bradar ‘Serviam’ (‘Eu servirei’, em latim),
cumprir rotina rígida e obedecer sem duvidar são um conforto e uma fonte de
felicidade. Para os dissidentes, é lavagem cerebral – uma estratégia que usa a
fé e a Igreja Católica para controlar e influenciar o mundo. São Escrivá teve o
cuidado de reservar um ensinamento para esse impasse: ‘Isso – o teu ideal, a tua
vocação – é… uma loucura. E os outros – os teus amigos, os teus irmãos – uns
loucos… Não tens ouvido, por vezes, esse grito bem dentro de ti? Responde, com
decisão, que agradeces a Deus a honra de pertencer ao
‘manicômio’.’




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