Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ernesto Bernardes

‘Durante dois milênios, filósofos e teólogos, pintores e escultores, escritores e cineastas fizeram do relato da vida de Jesus uma espécie de espelho, cada qual colocando nele um pouco da própria imagem. O filme de Mel Gibson, A Paixão de Cristo, não foge à regra. Focalizando a tortura física de Jesus homem, o diretor atinge os espectadores na boca do estômago, fazendo-os sair trêmulos da sala de projeção. Gibson diz que simplesmente mostra ‘o que aconteceu’, usando apenas ‘o que está na Bíblia’. Em termos. A fita, de estréia marcada para o fim da semana, toma liberdades e faz simplificações forçadas tanto com a narrativa dos Evangelhos quanto com as pesquisas históricas. Se o retrato do filme, porém, é tosco, o que se sabe, com algum nível de certeza, sobre os tempos e a condenação de Cristo?

Jesus nasceu, viveu e morreu num ambiente de extraordinária complexidade. Seus seguidores constituíam uma das muitas facções em que se dividira o judaísmo, submetido à enorme pressão do domínio estrangeiro. Desde o século VI a. C., babilônios, persas, gregos e romanos ocuparam sucessivamente a Palestina. Sob o jugo de Roma, no ano 37 a. C., Herodes, um aventureiro sem escrúpulos, foi proclamado rei da Judéia. Astucioso e sem freio moral, impôs sua realeza sobre um território que ia da Síria ao Egito. Entre suas grandes obras, destacou-se a reconstrução do Templo de Jerusalém, com a qual esperava conquistar a simpatia dos judeus, que o odiavam. Mas o preço desses empreendimentos foram uma opressão ilimitada e impostos astronômicos. Quando o rei morreu, no ano 4 a. C., seu território foi dividido entre três filhos igualmente despóticos. Foi nesse período conturbado que Jesus viveu. A aguda insatisfação popular gerava um clima de revolução iminente, que, na década de 60 d. C., explodiria em levantes generalizados contra a presença romana. A repressão a esse movimento culminou, em 70 d. C., com a destruição de Jerusalém pelas legiões comandadas por Tito, futuro imperador de Roma.

Séculos de domínio estrangeiro haviam produzido no judaísmo uma profunda crise de identidade. Não havia pensamento único, como o filme de Mel Gibson sugere, e numerosas facções disputavam a cena pública. No topo da pirâmide, havia os saduceus, grandes proprietários de terras e membros da elite sacerdotal. Esse grupo seguia uma política de conciliação com os dominadores romanos. O centro de sua atividade era o Templo de Jerusalém e, em matéria religiosa, aceitava apenas o que estava escrito na Torá, constituída pelos cinco primeiros livros da Bíblia. Foram eles os principais acusadores de Jesus.

Um degrau abaixo ficava o importante grupo dos fariseus, cujo nome vem do hebraico perishut (‘separação’). Eles se isolavam do resto da comunidade pelo cumprimento minucioso das regras de pureza prescritas na Torá. Vinham principalmente da classe dos artesãos e pequenos comerciantes. Nacionalistas, esperavam um Messias guerreiro que libertasse Israel da dominação romana. Participavam do Sinédrio, mas atuavam preferencialmente nas sinagogas espalhadas pelo país. Sua doutrina sobre a imortalidade da alma e a ressurreição do corpo influenciou o pensamento cristão. Outro grupo eram os Doutores da Lei (escribas). Não formavam um partido, mas gozavam de enorme autoridade por ter entre seus membros os intérpretes abalizados das Escrituras. Diferentes dos saduceus, que se prendiam à leitura literal da Torá, eles reconheciam no texto bíblico toda uma dimensão esotérica. Havia também a seita dos essênios, constituída por sacerdotes dissidentes e adversários da ordem estabelecida. Moralistas, viviam em comunidades fechadas e consideravam-se os únicos remanescentes ‘puros’ de Israel. Opunham-se à propriedade privada e ao comércio. Aspirantes ao grupo deveriam passar por um período de iniciação que durava três anos e culminava no ritual do batismo. Combatiam os romanos e a elite sacerdotal, abominavam os sacrifícios praticados no Templo e esperavam o Messias para deflagrar a guerra santa que instauraria o reino dos justos. Finalmente, também na ‘extrema esquerda’ daquele tempo, havia os zelotes, dissidentes radicais dos fariseus. Na maioria pequenos camponeses, eram ultranacionalistas e pretendiam expulsar pelas armas os dominadores pagãos. Eram ferozmente perseguidos pelos romanos. Entre os discípulos de Jesus, havia pelo menos dois zelotes – Simão e Judas Iscariotes. Eles e seus partidários parecem ter depositado grandes esperanças na liderança do mestre. Mas a mensagem atemporal de Jesus não coincidia com o projeto militar do grupo.

Os ‘ladrões’ provavelmente também foram crucificados por subversão

Sob aguda opressão e crise de valores, as camadas mais pobres aguardavam a vinda do Messias. O termo em hebraico significa ungido e, no Antigo Testamento, designava os sumos sacerdotes e os reis, sobre cuja cabeça se derramava o óleo santo, como sinal de que haviam sido escolhidos por Deus para uma missão. Como Davi, mil anos antes, o Messias aguardado deveria libertar o país do domínio estrangeiro e restaurar uma realeza legítima em Israel. Ao iniciar sua atividade pública, Jesus foi identificado com esse personagem. Mas os desdobramentos de sua prática frustraram essa expectativa guerreira, nacionalista e monárquica. Para alguns estudiosos, essa frustração pode explicar a traição de Judas, cujo drama de consciência é retratado com propriedade em A Paixão de Cristo. Mas o filme não deixa claro que essa mesma frustração tomou conta da multidão que, dias antes, acolhera Jesus em triunfo. Seus inimigos – saduceus à frente – souberam explorá-la, para levar o homem à morte. Poucos contemporâneos de Jesus compreenderam que a revolução que ele de fato propunha era nas consciências – não uma simples mudança de governo.

Apesar das idéias revolucionárias, Jesus jamais quis romper com a tradição judaica. Passagens dos Evangelhos o descrevem ensinando nas sinagogas e atestam que conhecia profundamente as Escrituras. Seus interlocutores o chamam de rabi, que significa mestre. Estudiosos contemporâneos sublinham que os ensinamentos de Jesus apresentam notáveis paralelos com o pensamento rabínico da época. O que motivou sua condenação foi um confronto radical com a estrutura de poder constituída em torno do Templo. Essa instituição era, então, o centro da vida econômica, política e religiosa do país. Controlava os sacrifícios diários de animais e a cobrança de impostos. Naquele tempo, numa única Páscoa judaica, foram imolados 250 mil cordeiros. Os animais sacrificados passavam por um controle de qualidade, baseado nas regras bíblicas de pureza. Isso fazia com que a maior parte daqueles trazidos pelos pequenos produtores fosse recusada. Em seu lugar, fiéis eram obrigados a comprar animais criados por grandes proprietários de terra ligados às famílias sacerdotais e oferecidos a preços exorbitantes. Durante as festas religiosas, um pombo (o animal mais barato) alcançava cem vezes o preço normal, custando o equivalente ao salário de um dia de trabalho.

A virgem e Madalena, no filme

Além dos sacrifícios, o Templo lucrava com os impostos – havia um cadastro de 1 milhão de contribuintes, em toda a Palestina. Os pagamentos não deveriam ser feitos na moeda local, inflacionada, mas trocados pela tetradracma tíria, moeda tão forte que não sofreu nenhuma desvalorização em 300 anos. Cunhada na cidade fenícia de Tiro, ela tinha em uma face a imagem de Melkart, deus protetor dos tirenses, e na outra a águia de Júpiter, divindade romana. Para os judeus piedosos, era um escândalo que os sacerdotes adotassem uma moeda decorada com figuras pagãs. Escandalosa também era a comissão de 8% cobrada na conversão. Por isso, ao expulsar cambistas e vendedores de animais, Jesus não afrontou um bando de camelôs – bateu de frente com a elite dominante. Aproveitando o momento em que o volúvel ânimo da multidão migrou do entusiasmo para a decepção, os principais chefes saduceus, Anás e Caifás, incitaram as massas a exigir a morte do homem que, dias antes, haviam exaltado. Para emprestar legitimidade ao processo, convocaram o Sinédrio.

Essa assembléia, além das questões legais, cuidava dos assuntos de caráter ritual. Presidida pelo sumo sacerdote, era composta de 70 membros proeminentes da sociedade. No tempo de Jesus, os saduceus tinham a maioria. O filme de Mel Gibson mostra, de forma apressada, que nem todos os membros do conselho estavam presentes à reunião que acusou Jesus e que alguns se opuseram às manipulações de Anás e Caifás. De fato, havia no Sinédrio até discípulos secretos de Jesus. Mas a própria atuação de Anás e Caifás precisa ser posta em perspectiva. Se é verdade que esses sacerdotes riquíssimos agiram em defesa de seus privilégios, é certo também que buscavam preservar as instituições nacionais em um contexto extremamente adverso. O clero conservador temia que a mobilização popular suscitada pelo Nazareno evoluísse de forma imprevisível.

Naquele período, os romanos crucificaram 10 mil pessoas

Segundo o padre Raymond Brown, autor de The Death of the Messiah (A Morte do Messias), a obra de referência sobre o assunto, não havia como condenar Jesus pelos crimes religiosos sobre os quais o conselho ainda tinha poder de execução mesmo durante o jugo romano. Jesus foi repudiado pelos sacerdotes que o acusavam de se proclamar Messias, mas isso não era crime na lei judaica. Muitos outros o fizeram naquela época (alguns até no século XX), sem sofrer represálias por isso. Ele também não foi acusado de blasfêmia (se fosse, poderia ter sido apedrejado). Os sacerdotes o acusaram perante a autoridade imperial – Pôncio Pilatos, o procurador romano. A descrição dos Evangelhos sobre o julgamento de Jesus é um dos pontos em que eles mais divergem da pesquisa histórica. Basicamente porque os textos, escritos no tempo da tensão máxima entre as correntes judaicas, alguns após a destruição de Jerusalém, procuravam ao mesmo tempo converter romanos e apresentar os dirigentes do templo da pior maneira possível. Segundo John Dominic Crossan, um dos mais importantes historiadores da religião, eles sublinham a responsabilidade de Caifás e atenuam a de Pilatos. O fato é que Jesus foi acusado de ameaçar a destruição do templo e proclamar-se ‘rei dos Judeus’, o que caracterizaria subversão. Esse era um dos principais motivos para a crucificação, naquele tempo. Tanto Barrabás quanto os dois ladrões, pendurados ao lado de Cristo no Gólgota, eram provavelmente revoltosos políticos, já que o termo usado para designá-los no Evangelho significava também ‘insurgente’. Historiadores calculam que, nas três décadas da vida de Jesus, os romanos crucificaram 10 mil condenados. No alto das cruzes, colocava-se o titulus, uma placa para anunciar ao povo o porquê da execução. O titulus ‘Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus’ aponta para o mesmo crime, subversão.

Os Evangelhos contam que, antes de ser crucificado, Jesus foi torturado pelos lacaios do sumo sacerdote e pelos soldados romanos. A pesquisa arqueológica trouxe importante prova a favor da idéia de que Jesus foi torturado também pelos sacerdotes, quando descobriu que a casa de Caifás em Jerusalém possuía uma masmorra particular. A flagelação, de uma brutalidade aterradora, é o centro da narrativa em A Paixão de Cristo. Pode-se questionar por que o cineasta mostra o episódio, que ocupa poucas linhas em cada Evangelho, numa seqüência horripilante de nove minutos. Mas ele basicamente bate com a História. Já a cena da crucificação se apóia em tradições do cristianismo popular sem respaldo nos Evangelhos ou na pesquisa histórica. As cruzes, sabemos hoje, não eram altas como imaginaram os pintores renascentistas. Seu poste, esculpido no tronco de uma árvore de pequeno porte, a oliveira palestinense, ficava fixo no local da execução. Cabia ao condenado transportar a barra horizontal, pesada o suficiente para produzir hematomas em suas costas. Alcançado o destino, o homem era deitado no chão e pregado à barra, que os soldados içavam. Três pregos de ferro, de 18 centímetros cada um, prendiam o condenado à cruz. Os membros superiores não eram fixados pelas mãos (se fosse assim, o peso do corpo as rasgaria) como no filme, mas pelos pulsos, entre os ossos rádio e cúbito. O terceiro prego atravessava os pés, colocados um sobre o outro, e os comprimia contra um pequeno toco preso ao poste. Os braços erguidos dificultavam a respiração; os líquidos acumulavam-se nos pulmões; a morte vinha por asfixia. Apoiado sobre o toco, o condenado podia erguer o corpo de tempos em tempos, para respirar melhor – o que prolongava sua agonia. Era comum os crucificados sobreviverem por até três dias. Jesus, debilitado pelas torturas, morreu, segundo os Evangelhos, em seis horas. Por mais que a ciência esmiuce todos os detalhes do sacrifício de Jesus, porém, há nele uma dimensão mais importante, a idéia que revolucionou a história do espírito humano. A noção de que Deus pôde sacrificar o próprio filho para redimir os homens – e que, finalmente, o amor triunfa sobre toda a violência e adversidade – é o eco da Paixão que transcende o tempo e leva cada ser humano, independentemente de religião, a admirar essa história mesmo depois de 2 mil anos.’



Eduardo Souza Lima

‘O diretor-pregador pegou Cristo para Cristo’, O Globo, 14/03/04

‘Que Mel Gibson professe a sua fé da forma que bem entender. Desde que não constranja o semelhante, ninguém tem nada a ver com isso. Seria o caso, se ele tivesse feito ‘A Paixão de Cristo’ para ser exibido unicamente na igreja que mandou erigir nos arredores de Malibu para o seu pai. O problema é que o seu testemunho de fé foi feito para exibição em cinema. Para o espectador comum, aquele que não reza da mesma crença que o diretor, restará apenas um despropositado exercício de sadismo. De cinema, muito pouco.

Gibson, o diretor, parece acreditar piamente que só é possível despertar emoções genuínas no espectador se for o mais explícito possível – o pregador, pelo visto, também, mas isso não vem ao caso. Assim, para que ele compreendesse toda a revolta de William Wallace (o próprio Gibson) em ‘Coração valente’, deveria ver, da forma mais crua possível, a bela Murron (Catherine McCormack), a amada do mocinho, ser degolada. Assim, para que ele tivesse a idéia clara do tamanho do sacrifício a que se submeteu Jesus, seria preciso ver as Suas costelas por baixo de Suas carnes dilaceradas, os pregos atravessando Suas mãos e pés, cada tombo e chibatada que Ele tomou.

Gibson não mentiu ao dizer que seu filme seria uma adaptação fiel dos Evangelhos. Tirando umas poucas cenas a que se permitiu imaginar – o roteiro é dele e de Benedict Fitzgerald – há um pouco de cada um dos quatro em ‘A Paixão de Cristo’. A mulher de Pôncio Pilatus, personagem que se chegou a dizer teria sido inventado por ele, está em Mateus; e, sim, sacerdotes esbofetearam-No e cuspiram no Seu rosto no Sinédrio, também segundo Mateus e Marcos. Teve a vantagem de esta ser a história mais conhecida do mundo. Mas, dramaticamente falando, cometeu um erro fatal: em nenhum momento fica claro por que Ele mereceu tal castigo.

O filme começa com Cristo rezando e sendo tentado por Satã no Getsâmani, pouco antes de ser preso. Daí para diante, inicia-se a sessão de tortura que só termina com a Ressurreição, entrecortada com flashbacks. Estes, porém, em vez de esclarecerem o que O tornava tão perigoso para os Seus inimigos, servem apenas para que o diretor crie metáforas – como estabelecer um paralelo entre a bacia na qual Pilatus lava as mãos com a que Ele lava as Suas na Páscoa, ladeado por Seus apóstolos. Nas mãos de Gibson, Cristo é apenas um inocente útil usado para provar uma tese.

Filme não é anti-semita

É bom que se diga que o filme não é anti-semita. Gibson se livra desta acusação usando o seguinte artifício: Satã está sempre à espreita quando os atos mais vis são cometidos, dando a impressão de que é o maior responsável por eles. Com isso, porém, o diretor enfraquece a tese que aparentemente defendia: a de que a Crucificação foi um crime perpetrado por toda a Humanidade. O próprio Judas só se suicida por intervenção de outro demônio, Belzebu.

Esteticamente falando, para compor os personagens, quase todos grotescos, o diretor aparentemente inspirou-se no neo-realismo italiano; em ‘Cristo carregando a cruz’, tela de Hieronymus Bosch; e nos quadros de Caravaggio; e na luz renascentista, na fotografia, assinada por Caleb Deschanel. Tal material poderia render um épico bíblico se tratado por um artesão mais hábil. Com Gibson, torna-se apenas uma infindável sucessão de closes teoricamente dramáticos, sustos gratuitos e seqüências em câmera lenta – tivesse sido todo rodado em velocidade normal, o filme teria menos de uma hora. Uma direção mais adequada a um terror B. Ao que, aliás, ‘A Paixão de Cristo’ mais se assemelha.’



O Globo

‘O milagre da multiplicação da platéia’, O Globo, 14/03/04

‘O visível interesse prévio do público brasileiro por ‘A Paixão de Cristo’ é algo com que se está contando nos escritórios da Newmarket Films. Em recente reportagem do ‘Hollywood Reporter’, a América Latina e, em particular, a América do Sul são apontadas como territórios importantes a serem conquistados pelo filme que – acredita a revista – poderia se tornar a maior bilheteria da História no continente. Tal afirmação traz uma aposta embutida: a de que o poder de mobilização da Igreja Católica na América Latina – testado e aprovado no Brasil com os mais de dois milhões de espectadores de ‘Maria, a mãe do filho de Deus’, de Diler Trindade, Moacyr Góes e padre Marcelo Rossi – é capaz de superar a aparente contradição mercadológica de ‘A Paixão de Cristo’. Que, afinal, é um filme brutalmente violento sendo ofertado a um tipo de platéia – católicos fervorosos – que, em princípio, rejeitaria fortemente filmes violentos.

– Crianças só devem ver o filme se acompanhadas dos pais porque é uma experiência dolorosa – disse Mel Gibson esta semana, considerando justa a classificação R ( restricted ) recebida pelo filme nos EUA, que impede a entrada de menores de 17 anos desacompanhados nos cinemas.

No Brasil, filme tem a vantagem de ser ‘censura 14 anos’ e não 17

De qualquer forma, há que se levar em conta dois fatores. Um: no Brasil, a classificação etária é mais branda, sendo o filme proibido para menores de 14 anos. Portanto, o potencial de bilheteria é maior. E dois: nos EUA, de acordo com pesquisas dos distribuidores, o filme tem se mostrado capaz de fazer o que ‘Cidade de Deus’ e ‘Carandiru’ fizeram aqui por outras razões: atrair para os cinemas gente que há anos havia deixado de freqüentá-los, limitando-se a ver filmes no vídeo e na TV.

E se a polêmica se revelar proveitosa na bilheteria daqui como foi na de lá, então o filme tem mais um trunfo. Porque ela já começou, cortesia (por enquanto) do renomado rabino Henry Sobel e do advogado e psicólogo paulista Jacob Pinheiro Goldberg, os primeiros judeus locais a se manifestarem com veemência após assistirem ao filme. Sobel encampa a tese de que é um filme que pode dar força ao anti-semitismo.

– Reconheço que todo trabalho tem sua visão pessoal. Acho errado é induzir o espectador a acreditar que aquilo que ele está vendo corresponde à realidade histórica (Gibson sempre vendeu o filme como o mais fiel relato da paixão de Cristo até hoje mostrado no cinema) . Nesse sentido, o filme é uma irresponsabilidade moral pelos danos que pode causar – disse Sobel na saída de uma sessão fechada para religiosos, terça-feira, em Brasília.

Na mesma ocasião, o bispo Dom Geraldo Majella Agnello, presidente da CNBB, disse ter achado o filme ‘terrivelmente cruel’, embora não tenha tocado no tema do anti-semitismo.

Filme já é o de língua não-inglesa mais visto nos cinemas dos EUA

Já Goldberg, que viu o filme em DVD pirata (aqui, como em vários países, eles já estão à venda), vai além: defende que ele seja censurado. Já até encaminhou um pedido de censura ou ao menos restrição de horário de exibição do filme ao secretário dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda.

– É um exercício de sadomasoquismo, parece um show pornô de culpa. Mel Gibson tem sérios componentes sadomasoquistas em sua personalidade.

Com tudo isso, a produção quebrou ao menos um recorde até agora (o de filme em língua não-inglesa mais visto nos cinemas americanos, que pertencia a ‘O Tigre e o Dragão’) e caminha para entrar na listagem dos filmes mais lucrativos da História por lá, visto que, pelo que se sabe, custou não mais do que US$ 30 milhões. Com o filme ainda no primeiro lugar da bilheteria nos EUA, já pode ser dado como certo que a arrecadação vai chegar a dez vezes esse valor. Contas feitas pela reportagem do ‘Hollywood Reporter’ estimam que Mel Gibson vá embolsar ao menos US$ 100 milhões.’



NA CAPTURA DOS FRIEDMANS
Inácio Araujo

‘Filme expõe ocultação da verdade’, Folha de S. Paulo, 12/03/04

‘‘Na Captura dos Friedmans’ não é o título que mais bem expressa o que este filme busca. Parece que houve uma captura policial e que o cinema estava lá, como testemunha. Isso até ocorre, em parte. Ainda assim, um nome como ‘Capturando os Friedmans’ teria a virtude da exatidão.

A história começa com Arnold Friedman, professor, pianista e pedófilo. À descoberta de algumas revistas pornográficas em sua casa, sucede a acusação policial: Arnold teria tido relações com seus alunos. Segue-se o processo e a prisão.

O caso envolve também um de seus filhos, Jesse, que forçaria as crianças a terem relações com Arnold. Para a polícia tudo é claro. Algo, no entanto, escapa ao bom entendimento: como é possível que Arnold tenha praticado tais atos, durante anos, sem que ninguém se queixasse ou que evidências de brutalidade viessem à tona, enquanto agora, todos -aparentemente com uma exceção- se declaram vítimas do monstro?

Aí as coisas, que pareciam claras, começam a se complicar. O que parecia um filme sobre o patético pedófilo se torna uma espécie de ‘Cidadão Kane’: nenhuma narrativa dá conta de um homem. Seja a policial, ou a das supostas vítimas, ou da ex-mulher (ressentida), ou de David, o filho mais velho, ressentido com a mãe.

A soma das experiências possíveis com esse estranho homem de olhos fundos, sorriso furtivo e pianista sensível vai longe. E isso em boa parte porque estamos às voltas com a sexualidade de alguém -isto é, com a nossa própria-, terreno delicado, em que o imaginário é radicalmente convocado. Assim, existe o homem, o Friedman, e sua perversão. Mas não deixa de haver o que em torno disso imagina (ou oculta) a mente do policial, da juíza, dos filhos, do irmão, da repórter, das vítimas supostas, e por aí vamos.

Ah, ia esquecendo, da ‘comunidade’. Isto é, de um desses bairros aprazíveis, tão tipicamente americanos. Ela é que, unânime, se levanta para apontar a infâmia que teria vitimado seus filhos. Mas como essas crianças nunca se queixaram antes? Teriam elas passado por lavagem cerebral e, de certa forma, lhes teria sido implantada uma memória sugerida pela polícia ou pela ‘comunidade’? Quem levanta essas questões é uma repórter da CNN, que suspeita de tantas evidências.

Assim a verdade, que parecia tão evidente, escapa entre nossos dedos e olhos -ainda que documentada exaustivamente- pela fresta da sexualidade. E este parece ser o objeto de Andrew Jarecki em seu magnífico filme: documentar a capacidade da verdade de se ocultar, de ser maior do que nossa vontade de achar e apontar o monstro que redime nossos males e nos apazigua as consciências.’




Correio Braziliense


"Rabino teme anti-semitismo", Correio Braziliense, 11/03/04


"Presidente do rabinato da Congregação Israelita Paulista, Henry Sobel não pretende lutar contra a exibição do filme A Paixão de Cristo. É contra a censura, mas considera a produção de Mel Gibson ofensiva e perigosa, e não a recomenda.


CORREIO BRAZILIENSE – Qual foi a sua reação diante da violência e do discurso religioso de A paixão de Cristo?


HENRY SOBEL – Fiquei repugnado. Não apenas com a violência do filme, mas com a falta de fundamentação histórica e com a subjetividade de Mel Gibson. Minha preocupação é que os anti-semitas usem o filme para recriar um velho pretexto que justifique e alimente o preconceito contra os judeus. Ainda assim, o filme renova e fortalece em mim o ânimo de, junto com irmãos católicos e cristãos em geral, tentar transmitir a todas as pessoas os valores superiores da tradição judaico-cristã: o mandamento do amor ao próximo. E, assim, a enfrentar o perigo do anti-semitismo.


CORREIO – Como o senhor vê a forma como os judeus são retratados no filme?


SOBEL – Isso me incomodou demais. O filme mostra os judeus da época de Jesus como sanguinários e vingativos. As virtudes do amor e da compaixão são atribuídas exclusivamente aos romanos. É natural que todo o roteirista e diretor de cinema projete em seu trabalho visões pessoais. O errado é induzir o espectador a acreditar que aquilo que vê na tela, um retrato subjetivo, corresponde à verdade histórica. No filme de Mel Gibson, isso é mais que um erro. É uma irresponsabilidade moral.


CORREIO – Existe a possibilidade de boicote ao filme pela comunidade judaica brasileira?


SOBEL – A palavra censura não existe no vocabulário judaico. Não vou sugerir boicote, apesar de não recomendar o filme. Não quero exagerar o potencial negativo da obra. Pessoas esclarecidas não vão mudar de idéia por causa do filme. Duas horas numa sala de cinema não irão destruir todo o trabalho de reconciliação entre judeus e cristãos de boa-fé. Pretendo até usar o filme pedagogicamente para mostrar aos jovens que a verdadeira história é bem diferente daquela que foi filmada."