Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Exclusão não é ‘fantástico’

NÃO É FANTÁSTICO…

Assim como eu sei que Papai Noel vai entrar pela chaminé no Natal, acredito que a loura Karina Bacchi namora o baixinho da Kaiser, José Valien. A cervejaria diz, em campanha publicitária, que a modelo e dublê de atriz se rendeu aos encantos de seu consagrado garoto-propaganda e teria aprendido ‘tudo’ com ele, inclusive o sabor da boa cerva. Lamentável.

O episódio faz refletir sobre o chamado ‘culto à personalidade’, que substitui a identidade do indivíduo pelo que ele pode representar em contextos programados. ‘Faço parte da massa, logo existo’, proclama o slogan da indústria cultural. O baixinho que, durante anos, estampou os anúncios da cerveja, agora ensina o que é bom à loura gostosa de carne e osso. Não diz por que a cerveja é boa, claro. Mostra que, se o cara beber, vai se dar bem como ele. Socorro!

Entre um break comercial e outro na emissora líder de audiência, atrações como o Video Show se revelam um house organ de luxo, mostrando o que a TV Globo precisa emplacar na grade de programação. Funcionam como velha ferramenta de cross media, apresentando os bastidores, o burburinho, as curiosidades e o tão sedutor making of dos programas. Autora de boa parte da história da TV brasileira, a emissora tem, digamos, legitimidade e autoridade para dedicar uma hora de suas tardes a lamber as crias, divulgar os próprios programas e promover ou criar suas celebridades, por mais instantâneas que sejam. Além disso, a edição e o formato cuidadosos retribuem com respeito a preferência do público.

Não é de se estranhar, então, que a Globo se ocupe em dizer, subliminarmente ou nem tanto, o que o telespectador deve assistir ou em mostrar o quanto os conteúdos exibidos estão sintonizados com a agenda nacional, seja no campo da política, da cultura, do entretenimento, do comportamento, enfim, do ‘fait-divers’. Faz parte do seu show e do seu negócio. É show-business.

Sem Regina Casé

Sabe-se que a relação entre mídia e realidade é um caminho de mão dupla e que, muitas vezes, a agenda nacional acaba sendo pautada pelos meios de comunicação. O que torna ilegítimo esse último papel da mídia é a subversão que se faz da notícia em nome do culto à celebridade. Os jovens da periferia de São Paulo que produzem ‘o mais puro hip hop brasileiro’, assim como os jovens da baixada fluminense que freqüentam os bailes funks no Rio de Janeiro, se considerados como manifestação de comportamento e cultura, atendem aos critérios de noticiabilidade tanto quanto o último filme do Walter Salles e o novo CD da Maria Rita, independentemente de gostos ou preferências. Mas precisam da mediação performática de Regina Casé e da moldura de ‘quadro especial’ do Fantástico para aparecer na televisão. O dia-a-dia, os hábitos e a identidade daqueles meninos e meninas são mostrados da maneira mais caricata possível. São personagens consumidos não como notícia, mas como parte de um enredo periférico, donos de cultura própria e alegórica.

Assiste-se ao quadro Central da periferia como quem observa uma maquete do que existe lá fora, numa cidade que não se deseja como sua. Depois daquela história, volta-se a ouvir as notícias da semana – os fatos que realmente interessam na vida real. E, assim, depois que a comediante-repórter ensinou que a periferia é pobre mas é legal, a televisão informa que o Caetano tem disco novo, que o governo quer nova reforma tributária e que a greve branca dos controladores de vôo deve acabar.

Só me acordem quando a periferia sem desgraça for manchete no Jornal Nacional. E sem a Regina Casé. Afinal, com o William Bonner é melhor. Exclusão não é fantástico. Na real, como dizem os cariocas, é a mais pura verdade. Merece primeira página.

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Jornalista e professora, Brasília