Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Hipólito da Costa, o crítico boicotado



** O primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela.


** E cada um deve – segundo suas forças físicas ou morais – administrar em benefício da mesma os conhecimentos, ou talentos, que a natureza, a arte ou a educação lhe prestou.


** O indivíduo que abrange o bem geral de uma sociedade vem a ser o membro mais distinto dela: as luzes que espalha tiram das trevas, ou da ilusão, aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano.


** Ninguém mais útil, pois, do que aquele que se destina a mostrar com evidência os acontecimentos do presente e desenvolver as sombras do futuro.


** Tal tem sido o trabalho dos redatores das folhas públicas quando estes, munidos de uma crítica sã e de uma censura adequada, representam os fatos do momento, as reflexões sobre o passado e as solditas [sic, sólidas] conjecturas sobre o futuro.


[Transcrição e pontuação adaptadas para o vernáculo contemporâneo; íntegra no volume I, pp. 3-4 de Hipólito da Costa e o Correio Braziliense, edição fac-similada da Imprensa Oficial do Estado de S.Paulo, 2000-2003]


Estas cinco sentenças constituem o primeiro parágrafo do primeiro texto jornalístico a circular num periódico em língua portuguesa nos dois lados do Atlântico. Leva o título de ‘Introdução’, poderia ser ‘Profissão de Fé’ ou ‘Juramento de Hipólito’. Deveria converter-se em banner, mural ou santinho para ser pendurado nas paredes ou colados nos monitores da redações brasileiras.


Nossa imprensa e nosso jornalismo começaram de forma auspiciosa, inspirada e esmerada. O texto de Hipólito da Costa, datado de 1º de junho de 1808, não é apenas um texto jornalístico, é um texto jornalístico sobre jornalismo. É uma gênese magistral: inaugura a imprensa e inaugura a crítica à imprensa. Concomitantemente.


Contra a ignorância


Há exatos dois séculos, aquele gaúcho (hoje seria uruguaio) percebeu que o jornalismo deve ser exercido obrigatoriamente em dois níveis: no plano factual e no plano crítico. Hipólito não perdeu tempo com elucubrações acadêmicas, malabarismos retóricos ou salamaleques aos poderosos. Estabeleceu paradigmas claros e curtos.


Depois de conhecer os Estados Unidos (emancipados apenas 24 anos antes, 1798-1800), depois da primeira estadia na capital do mundo (Londres, 1802), depois de viver as trevas portuguesas em pleno Iluminismo (1802-1805), Hipólito da Costa escapa das masmorras da Inquisição e retorna a Londres para iniciar a montagem do Correio Braziliense ou Armazém Literário, jornal-universidade, academia cívico-política onde o Brasil preparou-se para a Independência e Portugal, para sua maioridade.


Hipólito da Costa foi preso pela Inquisição lisboeta porque era maçom (iniciado na Loja Washington, em Filadélfia, EUA). Também eram maçons ou simpatizantes da franco-maçonaria os principais rebeldes sul-americanos reunidos em Londres em torno da figura de El Precursor, o general venezuelano Francisco Miranda – que lutou contra os ingleses na Revolução Americana, contra o Antigo Regime na Revolução Francesa e contra Bonaparte na restauração espanhola. Simon Bolívar integrava o mesmo grupo (ver Índice ‘Correio Braziliense’, volume 31, p. 56; 268, edição fac-similar, Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo, 2000-3).


Nosso primeiro jornalista foi também nosso primeiro crítico da imprensa, primeiro paladino pela liberdade de expressão e patrono do jornalismo político (idem, pp. 208; 223; 241; 264).


A obstinada luta contra a Inquisição não foi uma vendeta pessoal de Hipólito da Costa contra os seus algozes, mas uma cruzada contra a ignorância, o atraso cultural e o fundamentalismo religioso. A Narrativa da Perseguição de Hipólito da Costa (dois volumes, português e inglês, Londres, 1811) não foi a primeira denúncia contra o Santo Ofício aparecida no mundo desenvolvido. Foi o golpe mortal no dragão da maldade que sufocou a inteligência portuguesa (e por decorrência a brasileira) ao longo de 285 anos (1536-1821).


Atraso irreparável


Este breve perfil biográfico de Hipólito da Costa tem tintas encomiásticas, mas a intenção é oferecer ao observadores da imprensa elementos para questionar o ataque de amnésia e estultícia que anestesiou nossos jornalões e revistões no último fim de semana (31/5 – 1/6), quando o Dia da Imprensa engrandecia-se geminado ao 200º aniversário da criação da própria imprensa brasileira.


Lapso mesquinho que entrará para a história do nosso jornalismo como exemplo da conjunção de corporativismo, maniqueísmo e manipulação que continua pervertendo uma instituição organicamente liberal, libertária, singular e pluralista dois séculos depois da sua criação. Esta inesquecível mancada de 1º de junho de 2008 garante assim um lugar de destaque na imensa galeria dos fantasmas a serem exorcizados e sepultados definitivamente quando chegar o dia de encerrar nossa longa, demorada e deformada adolescência.


A Folha de S.Paulo foi exceção. Dignou-se a salvar uma página no primeiro caderno para lembrar seu DNA. E, como todas as exceções, serviu para desvendar a matriz do abominável esquecimento dos congêneres.


Ao constatar que o nosso país chegou com enorme atraso à Era Gutenberg (mesmo comparado com nuestros hermanos americanos), esquivou-se de examinar as razões do atraso. Ao mencionar o conglomerado de censuras que manietavam a cultura portuguesa no alvorecer do Iluminismo, passou ao largo da mordaça mais expedita, mais eficaz e mais mortífera da trinca: a censura do Santo Ofício.


Na edição televisiva deste Observatório transmitida em 13/5 foram mostrados os editais da censura inquisitorial proibindo a entrada em território português dos livros dos ‘Filósofos’ (enciclopedistas e iluministas). Não foi o Marquês de Pombal que embargou no mesmo Index as obras de Spinoza, Hobbes e Voltaire – foi a Santa Inquisição, filha dileta, principal mantenedora da Santa Madre Igreja [ver aqui arquivo PDF com a transcrição do programa e ilustrações].


A Folha de S.Paulo dispunha de uma cópia da ordem para desmantelar em 1749 a oficina tipográfica estabelecida no Rio de Janeiro dois anos antes. Neste documento está evidente que não foram a Coroa nem o Conselho Ultramarino os responsáveis pelo empastelamento da Segunda Oficina de António Isidoro da Fonseca. Quem impediu que a Colônia antecipasse em 59 anos o seu processo de emancipação não foi D. João V, foi o seu confessor, o cardeal inquisidor D. Nuno da Cunha, que comandou o Santo Ofício ao longo de 45 anos (1702-1752).


A vacilada da Folha nada tem de pessoal, trata-se de um jornal psicanalisado, acima dos ressentimentos, verdadeiramente a serviço do Brasil. A Folha apenas participava do complô para evitar a nominação com todas as letras dos responsáveis pelo irreparável atraso a que fomos condenados.


Caprichos reacionários


O Globo e o Estado de S.Paulo‘ também prepararam-se para cobrir condignamente a efeméride agregadora. Segregaram-se, não para agradar a respeitável CNBB, mas porque atendiam à convocação do Opus Dei, uma maçonaria às avessas, arrogante e desumanizada, que domina parte da imprensa ibérica e grande parte da imprensa latino-americana.


Os historiadores que no futuro estudarão o desenvolvimento da nossa imprensa certamente hão de estranhar não apenas estes buracos negros na memória dos nossos grandes veículos, mas a inexplicável ausência da ANJ, rainha de todos os convescotes, conviva obrigatória de todos os eventos relacionados com a liberdade de imprensa. Como explicar esta ausência da Associação Nacional dos Jornais numa festa da qual deveria ser a indisputável protagonista?


Como explicar aos leitores e jornalistas gaúchos (que tanto se esforçaram para antecipar a data magna da nossa imprensa, comemorando-a em 1/6 e não mais em 10/9) que o carro-chefe da RBS, a pujante Zero Hora (pelo menos em sua edição online), engavetou os 200 anos do feito de Hipólito da Costa para atender aos caprichos reacionários orquestrados pelo Opus Dei?


Estes são equívocos para não serem explicados. Nossa imprensa nasceu e agigantou-se a partir de 1/6/1808. Em compensação a grande imprensa apequenou-se irremediavelmente em 1/6/2008.


 


Leia também


Comemoração envergonhada – A.D.


ALMANAQUE HIPÓLITO
Ensaios sobre o jornalista e seu tempo


His Royal Highness e Mr. da Costa – Isabel Lustosa


Cronologia pessoal do jornalista – Antonio F. Costella


Os biógrafos de Hipólito da Costa – Antonio F. Costella


Os paradoxos da liberdade – Sergio Goes de Paula e Patrícia Souza Lima


Notas genealógicas: o ramo inglês – Antonio F. Costella


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Jornalismo, convergências e confrontos – José Tengarrinha


Os tempos de Hipólito, de 1808 a 1822 – Ivan Alves Filho


A Maçonaria em Portugal de 1727 a 1802 – João José Alves Dias


Entre a estrela e o satélite – Marco Morel


O nascimento do pensamento econômico brasileiro – Paulo Roberto de Almeida


Jornalismo e pensamento político – João Pedro Rosa Ferreira


Luz e trevas, estrangeirados e Inquisição – Alberto Dines


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Invasões em Portugal, a corte na América e o CB – Lúcia Maria Bastos P. Neves


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Um público para o Correio Braziliense – Jean Marcel Carvalho França


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Leitores brasilienses, um público rarefeito? – Marisa Lajolo


Correio Braziliense: ortografia e linguagem – Adriano da Gama Kury