Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jornalismo a serviço da ideologia

Na semana que passou, o público italiano pôde assistir a dois programas televisivos emitidos por dois canais árabes. O primeiro, na Al Jazira internacional, contava a história de duas jovens palestinas no meio do conflito árabe-israelense. Era contado sob o ponto de vista palestino, mas isso é secundário. O trabalho é um exemplo de como se pode praticar um bom jornalismo, mesmo abordando um assunto tão polêmico. O estilo da narração é sóbrio e delicado e merece grande respeito.

Mas, no mesmo dia, pôde-se ver o outro lado da moeda. O fato aconteceu nos estúdios da televisão palestina Al-Aksa. Seria, algo com um talk show. Os entrevistados eram Doha e Mohammed. Mas aí começa e parte mórbida do programa. A primeira envolve uma menina de cinco anos e a outra, seu irmão, com apenas quatro. São filhos de Rim al Ryashi, a qual, aos 22 anos, no dia 14 de janeiro de 2004, se fez explodir na Faixa de Gaza matando, junto com ele, cinco soldados israelenses.

Um ato de martírio

As crianças parecem perdidas nas poltronas pretas reservadas aos convidados, e embaraçadas, como todos os meninos do mundo, quando se sentem alvo de observação. O mediador veste o uniforme internacional daqueles de sua profissão, terno e gravata e sua expressão também é padronizada: compungido e sério, mas com aquela leveza que, em qualquer latitude, se acrescenta nas entrevistas com crianças. Ele pergunta:

– Onde foi a mamãe?

– Pro paraíso – responde a menina.

– O que fez a mamãe? – insiste o apresentador.

– Cometeu um ato de martírio – continua Doha.

O esplendor do paraíso

A tensão vai aumentando e o apresentador pergunta quantos hebreus ela matara. Quem responde é o menino, dizendo cinco – e mostrando, com a mão, esse número. O final é impressionante, quando o mediador, com o mesmo falso e doce sorriso, pergunta, como se fosse a coisa mais natural do mundo, se eles gostariam de ir encontrar a mamãe. A resposta vem dos dois ao mesmo tempo: – Sim!

Depois, automaticamente, Doha recita uma poesia feita para sua mãe: ‘Rim, você é uma bomba de fogo/os teus meninos e tua metralhadora são teu mote.’

No dia seguinte, Guido Rampoldi, articulista de La Repubblica, publicou ‘Os pequenos órfãos da kamikaze colocados à mostra na TV’, no qual faz ver que já está girando em volta dessas crianças alguém que lhes sussurra nos ouvidos o quanto é bonito o paraíso, dizendo que a mãe os está esperando lá. Quanto mais desesperada será a vida de Doha e Mohammed, tanto mais fácil será convencê-los do destino que estão sendo desde agora instruídos para seguir, de tornarem-se uma bomba de fogo, um raio de glória que mostra o esplendor do paraíso.

Ideologia do abuso

Há uma grande diferença agora, pois o que era uma suposição foi vista e isso deveria mudar as coisas, já que a Agência da ONU e as organizações internacionais que procuram proteger as crianças podem ter certeza que Doha e Mohammed estão em uma fábrica de kamikaze.

Quando a mãe desses meninos, filiada ao Hamas, registrou o vídeo-testamento, no dia 9 de janeiro de 2004, Doha estava sentada em seu colo, ao lado de uma kalashnikov, com uma granada na mão. Eles já são carne de açougue – é o que se entende pelo cinismo do apresentador do programa. Por mais pululem vilões de todos os tipos no jornalismo, é raro encontrar um como este. Certamente terá um nome e um sobrenome, para que o bom jornalismo árabe saiba quem é e, assim, possa rejeitá-lo, desmascará-lo. Ajudaria a evitar equívocos. Esse patife não é o islã, e muito menos o jornalismo árabe, que hoje tem muitos momentos de excelência e coragem, raramente vistos no mundo ocidental.

A indiferença à proteção da infância não é forçosamente o resultado de uma pobreza feroz. Nasce quase sempre do colapso de uma sociedade incapaz de acreditar em si mesma e em qualquer projeto de futuro, ou também da ideologia do abuso e de desprezo pelos fracos, como as mulheres e as crianças.

Que idéia de país e do futuro pode ter gente pronta a sacrificar meninos no altar do próprio deus perverso?

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Jornalista