Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O erudito, o popular e a telinha

Antes dela o fez Mario de Andrade, e antes deste, Afonso Arinos. O paulista descobre nos mercados populares do Recife músicas, danças, trajes e cordel criados nas camadas sociais até então sem voz. O Brasil de 1920 é um país de maioria pobre em que ir descalço ao centro da cidade como à Avenida Central no Rio é proibido, observa Lima Barreto. Rima com tal regra que na classe média se ignore a cultura popular, para aquela só vale a arte produzida por caucasianos, gramaticalmente impecável mesmo que superficial e apenas acadêmica. Na bagagem do autor de Macunaíma ao voltar do Nordeste está a porta de passagem para a enorme empreitada literária modernista.

Um aristocrata mineiro que vive no eixo Paris-sertão-do-Goiás revela ao Brasil litorâneo o cotidiano dos tropeiros nos longes da jovem República. É a caneta de Afonso Arinos que começa o inventário da realidade do sertão que depois ganhará o traço épico e lírico de Guimarães Rosa.

Com alguns ajustes, pois talvez sua diretora não tenha estudos suficientes para levar seu projeto ao erudito, mas ainda com o mérito de estender nosso olhar para os remotos brasileiros entra agora, em 2006, uma atriz de televisão. Faz no canal de grande audiência no sábado de tarde mais dado a banalidades do tipo Faustão e Gugu um programa com tudo para aparecer em TV Cultura. O tema, música brega, interessa à massa, mas Regina Casé consegue tratá-lo sem apelações. Por exemplo: ao dar flash-back na cantora tecnobrega encontra ruas mal calçadas e casebre para a infância de Leudiane, mas, diferentemente de Gugu e Faustão, não fica câmera de Regina a carpir a falta de dinheiro, não se permite populismos novelísticos.

Dedo de nostalgia

O Central da Periferia apresentado no sábado (3/6), na Globo, vai a Belém do Pará e retrata as bandas que arrombam na capital que é centro da Amazônia. Relembrado aos ouvintes tratar-se da metade dos quilômetros quadrados no mapa do Brasil, Regina Casé abre a lente sobre a banda Calypso e quejandas. A multidão empolgada lota uma enorme praça nas imediações do mercado Ver o Peso onde está montado o palco. Um helicóptero sobrevoa o local oferecendo vistas panorâmicas sobre a baía do estuário do Rio Amazonas.

O cenário transfere-se para cima de um saveiro onde estão três violões e bandolins elétricos de alta qualidade sonora. Aqueles cancioneiros passam dos 50 anos de idade, não se pode imaginar que arrastados pela tsunami da digitalização da música. A apresentadora os entrevista e nos intervalos ouvimos impecável melodia.

Os cientistas falam de uma economia informal no Brasil quase tão grande como a oficial. Pois do Central da Periferia deste sábado se pode tirar bom exemplo. Um dos quadros põe na telinha um típico empresário nacional, caso que certamente não figura nas galerias de honra das associações comerciais, mas é dotado de extraordinária dinâmica. É tanta energia que a empresa arma centrais de som eletrônicas digitais para um mercado efervescente enquanto lota um galpão com uma discoteca toda em vinil. As oficinas ficam no mesmo imóvel em que mora o proprietário. Este ‘bate uma laje’ no teto do prédio para ali reunir um motel para seu uso, uma academia de ginástica e uma prensagem de vinil. Zé Simão observaria estarem a caminho naquele andar dois centros de prensagem.

Ao Periferia de 3 de junho não falta nem mesmo um Mick Jagger tropical. A estampa do roqueiro inglês, que eletrizava centenas de milhares em Copacabana, parecia reproduzida no guitarrista de Renato e seus Bluecaps que voou de São Paulo para carregar o programa de Regina Casé de um dedo de nostalgia.

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Dirigente de ONG, Bahia