Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

O jornal (da integração) nacional

A televisão foi o mais avançado meio de comunicação de massa do qual serviu-se o regime militar, assim como o cinema para o regime fascista. Não surpreende, portanto, que a programação televisiva sob a ditadura fosse sob vários aspectos análoga à produção cinematográfica italiana sob o fascismo. Note-se, por exemplo, a semelhança estrutural entre os cinejornais da Itália de Mussolini e o principal veículo de informação televisiva produzido durante a ditadura militar: o Jornal Nacional. Associando informação e entretenimento (os cinejornais eram projetados antes dos filmes e o telejornal, antes da novela) ambos divulgavam em forma de notícia as realizações do governo.

A informação era tratada em modo direto, reproduzindo a primeira página de um jornal impresso: depois da manchete, passava-se súbito ao fato e a sua conclusão, que tinha o aspecto de um final feliz obtido graças à ação do regime. Somente os aspectos superficiais dos discursos políticos eram transmitidos, e o espectador permanecia à margem da notícia, ignorando os conteúdos de acordos e decretos. Eram freqüentes as imagens de inauguração de obras públicas e de progresso, demonstrando que o regime estava modernizando o país. Paralelamente, as notícias do exterior mostravam um mundo bizarro e caótico, convencendo a população sobre a segurança e a harmonia internas.

Diversamente do que acontecia no fascismo, porém, o Jornal Nacional não tinha o caráter institucional dos cinejornais, sendo realizado por uma televisão privada. Todavia, o título do noticiário traía a retórica nacionalista dos militares. Um jornal ‘nacional’ dava aos espectadores a sensação de usufruir de um serviço público, reforçando o senso de comunhão propiciado pelo sistema de telecomunicações da Embratel. Sistema que foi inaugurado em grande estilo pelo telejornal no dia 1º de setembro de 1969, a três meses da promulgação do AI-5, decreto que amordaçou o resto da imprensa brasileira.

Obras do governo

Se ‘integração’ era o termo que melhor representava a linha-dura então no poder, a palavra de ordem foi anunciada pelo apresentador Hilton Gomes na edição inaugural do telejornal: ‘O Jornal Nacional da Rede Globo, um serviço de notícias integrando o Brasil Novo, inaugura-se neste momento: imagem e som de todo o país’.

A primeira notícia do jornal, que se iniciava habitualmente com um comunicado de caráter oficial, foi a de que o país estava sendo governado por uma junta militar, a causa de um passageiro mal-estar do presidente Costa e Silva, que não era ‘grave’. Em seguida, um videotape mostrou o ministro Delfim Neto enviando aos brasileiros mensagem otimista. A aparição do ministro no telejornal era um sinal do papel que os economistas passariam a ocupar durante a ditadura. Os novos tecnocratas agiam como representantes oficiais do governo, presentes nos noticiários como ‘autoridades’, e o jornalismo transformou-se em instrumento de divulgação da política econômica do regime. Progressivamente, cifras, estatísticas e termos científicos começaram a fazer parte das notícias, em sintonia com a imagem de país eficiente e moderno que se estava construindo.

Depois de Delfim, foi a vez de Copacabana: no ar, 16 segundos de imagens que ilustravam obras do governo na praia, seguidas por uma reportagem sobre um concurso público. Para completar o quadro carioca, mostrou-se o Rio de Janeiro em festa pela Semana da Pátria. Os telespectadores puderam apreciar as imagens do desfile que celebrava o início de um campeonato universitário de futebol, a inauguração do Museu da Imagem e do Som, a exposição do Documentário Histórico da Independência e, enfim, o desfile dos estudantes da Escola Tiradentes, que levavam o ‘fogo simbólico da pátria’ à estátua do herói da Inconfidência mineira.

A terra do presidente

Mas o momento mais emocionante do telejornal foi sem dúvida o gol de Pelé contra o Paraguai, garantindo a participação do Brasil na Copa de 70. Na telinha, os craques Tostão e Pelé festejavam o gol, abraçados.

Passada a euforia, o jornal voltou a ocupar-se de assuntos sérios. Hilton Gomes abriu o bloco internacional com um comunicado preocupante: os pilotos das linhas internacionais entrariam em greve se a ONU não tomasse providências contra o seqüestro de um avião dirigido a Israel. E mais: tinham morrido Drew Pearson, em Washington, e o ex-campeão mundial de box Rocky Marciano em desastre aéreo. Mas nem tudo era tragédia. De Washington chegava uma boa notícia: o porta-voz do Departamento de Estado americano tinha afirmado que as relações entre Brasil e Estados Unidos continuariam inalteradas durante o impedimento temporário do presidente Costa e Silva.

Após o sombrio panorama internacional, seguiram-se as imagens de Porto Alegre, ‘terra natal do presidente’, onde os cidadãos faziam declarações ao vivo comentando o novo decreto do governo: estavam de acordo. Em seguida, Cid Moreira anunciou que Curitiba era a capital brasileira dos acidentes de trânsito e, para terminar, foram anunciados aumentos no preço da gasolina.

‘Boa-noite’

A primeira e histórica edição do Jornal Nacional, emblema do sistema televisivo implantado pela ditadura, concluiu-se com a solene declaração de Cid Moreira: ‘A escalada nacional de notícias da Rede Globo levou a vocês, hoje, imagens diretas de Porto Alegre, São Paulo e Curitiba. E tão logo a Embratel inaugure o circuito de Brasília, a capital do país e Belo Horizonte começarão a integrar, ao vivo, este serviço de notícias do primeiro jornal realmente nacional da tevê brasileira. É o Brasil ao vivo aí na sua casa. Boa-noite.’

A partir de então, telejornal e telenovela passariam a cimentar-se como ícones de realidade no imaginário nacional, finalmente integrado via Embratel. ‘Jornal nacional’, ‘novela-verdade’, ‘vida real’, ‘Brasil ao vivo’, ‘Brasil Novo’, ‘realmente nacional’ eram palavras repetidas que se contagiavam, uma absorvendo o sentido da outra. Era verdade a telenovela, era realmente nacional o telejornal, eram verdadeiras as imagens na tevê, era o Brasil ao vivo, era o Brasil de verdade… ali, na casa do telespectador, inaugurava-se o ‘Brasil Novo’!

O ‘Brasil Novo’ tinha aparecido nos 15 minutos em que foi ao ar o Jornal Nacional: uma junta militar governava o país, Delfim Neto tranqüilizava a população, realizavam-se obras, concursos públicos e festas patrióticas. Para comemorar, um gol de Pelé. Fora do Brasil: greve, terrorismo, mortos, mas também a certeza de que Washington continuava partner incontestável do regime. Para reforçar a aprovação internacional, os cidadãos de Porto Alegre comunicavam o próprio apoio ao governo. Em meio ao bem-estar interno, reforçado pelo contraste com o panorama externo, o aumento da gasolina passava quase despercebido. E também, depois da notícia sobre os acidentes de trânsito em Curitiba, era de se esperar que os motoristas corressem menos. ‘Boa-noite’.

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Mestre em Scienze dello Spettacolo e delle Produzioni Multimediali pela Universidade de Veneza