Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O jornalismo ‘liquidificador’

O jornalismo liquidificador – novo modelo de telejornalismo apresentado pelo SBT e pelo âncora Carlos Nascimento – traz novidades. A primeira delas é o anúncio, de forma nítida, verbal e graficamente, diante de cada matéria abordada, do assunto que será tratado. Uma mudança simples, mas de profundo significado. A escola de telejornalismo brasileira optou desde o início pelo que chamo de modelo ‘liquidificador’, ou seja, despejar notícias dos mais variados assuntos, umas ao lado das outras, sem qualquer roteiro mais claro para a identificação das matérias.

Ao contrário do que pensam alguns, esse modelo de transmissão da informação de maneira fragmentada tem seus propósitos e não é o de simplesmente deixar loucos os telespectadores. Senão, vejamos: você está assistindo a uma matéria sobre um terrível desastre aéreo e, logo em seguida, sem nenhum aviso, depara com o nascimento de um ursinho panda em um zoológico qualquer da China.

Como em qualquer setor da experiência humana, a racionalização seria o caminho lógico a seguir, com a devida identificação dos conteúdos. E por que não se pensou nisso antes? Ora, o modelo de transmitir informações aleatoriamente cumpriu muito bem seu papel durante um período em que convinha descontextualizar os conteúdos, jogar psicologicamente com a emoção dos telespectadores e guiá-los para o melhor ou o pior dos mundos, ou seja, para o mundo em que os detentores do poder queriam que estivéssemos.

O lugar que cada notícia ocupa no telejornal sempre desempenhou um papel importante na derrubada de ministros e governos, na tentativa de forçar uma licitação, pressionar instituições ou o que quer que fosse do interesse de quem desejasse manipular os conteúdos para obter os resultados ‘emocionais’ necessários junto à população. Identificar explicitamente conteúdos não era do interesse para que se pudesse facilitar a manipulação. Quanto mais as notícias se fundissem ou se distanciassem, melhor para a descontextualização – ou a contextualização segundo interesses.

Tendência democrática

Os teóricos do ‘liquidificador’ sempre souberam disso. Quem talvez nunca soube é escola dos ‘papagaios’, que imita modelos sem se perguntar por quê. A identificação de temas de forma nítida, além de preparar psicologicamente o telespectador para o assunto, estabelece uma ‘barreira’ emocional que permite a ‘impermeabilização’ entre um tema e outro; desta forma, por exemplo, o cidadão terá mais liberdade para julgar a ineficiência do governo, ou um suposto problema de saúde pública, sem estar ‘influenciado emocionalmente’ pelo ufanismo do milésimo gol de Romário ou o nascimento do ursinho panda num zoológico qualquer da China. Parece simples, mas é assim que funciona.

No mundo ‘real’, ninguém se aproxima de você, conta uma desgraça e, logo em seguida, sem maiores explicações, começa a falar de futebol. Imagine, a pessoa vem e diz: ‘Viu o acidente de avião ali na esquina? Morreram 200 pessoas e o resultado do Atletiba foi de um a zero para Atlético.’ Você não chamaria o cara de louco? Insensível? Mas, por absurdo que possa parecer, durante décadas, imperceptivelmente, foi isso que aconteceu nos principais telejornais em nome do ‘dinamismo da notícia’ e da suposta ‘objetividade’, que escondiam, na verdade, outros interesses.

Ainda que o telejornalismo brasileiro esteja longe de contextualizar historicamente os conteúdos, estabelecendo de forma mais profunda uma relação entre causa e efeito (porque não convém aos detentores do poder estabelecer uma relação entre a profunda miséria e o arbítrio de uma elite entreguista, pedante e alienada), é preciso louvar as iniciativas de tendência democrática de alguns diretores de jornalismo ou âncoras, deste ou daquele meio de comunicação.

Opinião sem contestação

Neste sentido, o Jornal do SBT apresenta corajosamente a participação ‘ao vivo’ dos telespectadores, dando suas opiniões sobre este ou aquele assunto. Se os assuntos talvez não sejam tão relevantes como gostaríamos que fossem, em todo caso permite-se o que seria impensável durante o regime militar: que a população possa se manifestar, com todas as suas contradições, em um telejornal nacional.

Diante da iniciativa, constatamos, por um lado, a miséria da falta de informação do telespectador em igual proporção à criatividade, inteligência e capacidade de discernimento destes mesmos telespectadores. Paradoxo? Não, se também levarmos em conta a ‘arrogância intelectual’ de Carlos Nascimento, que, como todo jornalista pertencente à elite, acha-se o detentor da verdade, chegando ao ponto de discordar veementemente das opiniões dos telespectadores ao vivo, diante das câmaras.

E para o bem da nação, vai para o ‘brejo’, também ao vivo, diante de todos, o mito da objetividade, tão fantasiosamente ensinado nas salas das universidades para os neófitos: ou eu, que estudei tanto e sei tanto sobre tudo, ficarei calado diante da opinião ‘absurda’ que um qualquer do povo vá transmitir ao vivo no ‘meu’ programa? Tenho certeza, de antemão, que sei infinitas vezes mais sobre economia, governos, futebol, relações internacionais ou qualquer assunto, do que o ‘despreparado’ atrás da linha. Aliás, ele devia dar graças a Deus que o colocamos aqui para falar para todo o Brasil, já que não tem ‘instrução’ alguma. Agora, deixar que ele emita livremente sua opinião, que é frontalmente contrária a minha, sem contestá-lo, ah!, isso é que não!

Parabéns pela ousadia

Enquanto os militares sempre fizeram apologia da suposta incapacidade do povo em traçar seus caminhos – e graças à contribuição que deram levando nossos líderes para o cemitério ou para os porões dos quartéis, o país virou mesmo esta pasmaceira –, o movimento social sempre delatou historicamente a arrogância de uma classe incapaz de assimilar opiniões contraditórias, por mais abalizadas que sejam. É o que se verifica, graças à participação ao vivo: muitas opiniões podem ser ‘fracas’ e descontextualizadas (resultado do longo processo de ausência de participação popular), mas a elite, por sua vez, está longe de estar preparada para o exercício da democracia. E isso, devemos reconhecer, é um grande avanço: a exposição desta ‘contradição’ social ao vivo, diante de todos, em horário nobre.

Ao olharmos nossa ‘miséria’, tanto a das classes populares como a das supostas elites intelectuais, talvez possamos avançar dialeticamente. Olhar com humildade e reconhecer os limites históricos que nos foram impostos e nos moldaram. Por tudo, parabéns ao povo, ao Carlos Nascimento e ao SBT, pela ousadia, com todas as suas contradições.

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Jornalista e escritor, Curitiba, PR