Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O que de fato está sendo discutido

Há um clima de grande agitação nos dias que antecedem a definição oficial do padrão de TV digital a ser adotado no Brasil – o que acontecerá até o próximo 10 de fevereiro. Na terça-feira (17/1), o CPqD apresenta a 11 ministros o resultado dos trabalhos dos 22 consórcios que foram formados para fornecer o embasamento tecnológico para as decisões de governo.


São trabalhos que devem ultrapassar 10 mil páginas de texto e que contêm extraordinárias contribuições para a formação de um sistema que contemple desde a mobilidade até a alta-definição, mas que não apontam conclusões. Estas são deixadas a cargo do governo. São decisões que passam ainda pelo exame dos ganhos sociais, das viabilidades face à legislação e, naturalmente, dos compromissos políticos. E envolvem grandes investimentos.


O CPqD (citado pela revista Exame de 13/1/2006) estima em 1,5 bilhão de dólares o custo para a troca dos sistemas de transmissão pelas emissoras de TV, e em 4 bilhões de dólares o custo da compra de novos aparelhos pelos consumidores brasileiros. Outras estimativas, que consideram os investimentos em produção, elevam para 10 bilhões de dólares em uma década o preço da digitalização. E isso é pouco, se comparado ao valor do impacto social que vem na esteira da implantação das novas plataformas.


‘Plural, diverso, democrático’


Neste clima, é natural a existência de um intenso jogo de informação e contra-informação disseminado na mídia.


O jornalista Luís Nassif, por exemplo, em sua coluna de sexta-feira (13/1) na Folha de S.Paulo, reproduz a visão dos radiodifusores sobre a questão. Há no texto algumas incorreções, como atribuir ao cabo o ‘diferencial da interatividade’, mas ele expressa com clareza os pontos defendidos pelo diretor técnico da Globo, Fernando Bittencourt.


A estratégia dos radiodifusores consiste em não aceitar qualquer modificação nos modelos de negócios vigentes, já que, na visão deles, as emissoras de televisão já estão sendo invadidas pelas companhias de telecomunicações e não teriam como suportar a presença de novos players neste mercado. Nassif reproduz o discurso de sua fonte. Ressalta que ‘com a implantação da TV digital, as emissoras atuais não prevêem um crescimento do bolo publicitário. Por isso, trata-se muito mais de uma estratégia defensiva, para não perder publicidade para os concorrentes que já se digitalizaram’.


Não é essa a visão de outras partes envolvidas no processo. É bastante emblemático, até, o fato de que o próprio Nassif abra sua coluna dizendo que ‘na discussão sobre TV digital, os maiores interessados obviamente são as emissoras abertas, os chamados broadcasters’. Isso parece fazer sentido, mas olhando-se mais a fundo para a questão percebe-se que além das redes de televisão há outros setores ligados à mídia profundamente imersos nessa discussão.


Um exemplo disso pode ser visto num documento de 30 páginas intitulado ‘TV Digital: princípios e propostas para uma transição baseada no interesse público’. O documento é elaborado pela ONG Intervozes – Coletivo Brasileiro de Comunicação Social. Nele, a organização discute três questões essenciais no ambiente digital que está em formação: o modelo de serviços, a política industrial e a produção de conteúdo.


Há nesse documento discordâncias muito fortes em relação à visão expressa por Bittencourt, mas deve-se levar em consideração que muitas dessas discordâncias não constituem necessariamente uma confrontação. São, por assim dizer, um complemento natural à forma pela qual as principais redes de televisão do país encaram o desenvolvimento de seus negócios num ambiente digital.


O Intervozes começa pedindo o que a essa altura parece impossível: o adiamento da decisão marcada para 10 de fevereiro. Diz o documento:




‘Objetivamente, não há qualquer razão, sob o prisma do interesse público, que justifique ‘pressa’ nas decisões acerca do SBTVD. (…) Ao contrário, uma definição mais criteriosa, que conte com a participação dos diversos setores envolvidos no processo, fará com que o Brasil tenha reais condições de se inserir de maneira independente em âmbito global e dará ao país a oportunidade real de desenvolver um sistema de comunicações que seja plural, diverso e verdadeiramente democrático.’


Debate regulatório


As noções de pluralidade, diversidade e democracia variam de acordo com quem as utiliza. E elas são igualmente utilizadas hoje pelas emissoras de televisão, pelas teles e pelos chamados setores sociais. É isso, em resumo, o que está sendo discutido neste momento. Os radiodifusores querem um ambiente de TV digital que reproduza o ambiente existente hoje, valorizado pelas transmissões em alta-definição (HDTV) e algumas propriedades interativas, mas sem a entrada de novos players. Sustentam, como expressa o diretor técnico da Rede Globo, que os atores da televisão aberta são os que operam neste momento e gozam das concessões para transmissão em VHF. E que novos players têm constantemente entrado na própria televisão analógica – principalmente mas não só – através de concessões em UHF. Nem mais nem menos do que isso.


Em outras palavras: os radiodifusores estão convencidos de que a migração para a TV digital é um problema que concerne exclusivamente às emissoras que existem hoje num ambiente analógico.


É uma posição sustentável. Mas outros setores, opostamente, acreditam que as plataformas digitais, com as possibilidades de multiprogramação que oferecem, deveriam servir ao aparecimento de novas redes abertas, inclusive com a entrada de emissoras públicas, como as universitárias, que hoje são distribuídas apenas pelos sistemas de TV por assinatura.


As redes de televisão estão afinadas na defesa de uma posição única. Mas não têm mantido a mesma afinação nas suas práticas como concessionárias de serviços públicos de radiodifusão. Não se deve negligenciar o fato de que a hegemonia da Rede Globo, tanto no campo comercial quanto no da construção de conteúdo, acaba gerando no seu discurso um grande paradoxo: a voz da emissora é geralmente acompanhada pela voz de radiodifusores que têm visões muito distintas no que diz respeito a questões essenciais – como a nacionalização da produção ou a construção de conteúdo de qualidade, por exemplo.


Foi a diferença de estilos entre a Globo e outras grandes redes que acabou gerando o racha na Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e o surgimento de entidades que representam mais de perto o pensamento de outros radiodifusores.


Conflitos semelhantes têm surgido também em outros momentos do debate regulatório no país. A discussão do projeto da Ancinav, ao longo de quase todo o ano de 2004, é um exemplo marcante disso. O discurso da rede de televisão que mais produz e fatura no país – e que em alguns pontos essenciais traduzia apenas o que muitos gostariam de ver implantado em todo o ambiente televisivo – foi tomado então como o discurso de toda a televisão brasileira, que na sua maior parte não cogitava em adotar o mesmo modelo no que diz respeito às estratégias de produção e programação e, principalmente, no tocante à construção de ambiente televisivo como um todo.


Construção de consensos


É claro que a discussão não se esgota aí. O padrão japonês – que será a base do sistema escolhido em fevereiro – permite a transmissão móvel (isto é, para telefones celulares, computadores de mão e afins) sem a intermediação das operadoras. Isso representa uma vitória dos radiodifusores sobre as empresas de telecomunicações.


Há muito tempo os radiodifusores argumentam que as teles têm a prerrogativa de utilizar o sistema que bem entenderem num espectro muito maior que as emissoras de televisão. Acham que na definição de um cenário possível nas plataformas digitais, não há como vestir nas emissoras uma camisa-de-força que não coube às teles. Isso indica apenas que a nova Lei Geral de Comunicação de Massa vai ter que ir muito fundo na questão para dar suporte legal às demandas da convergência. Por mais que se tente driblar a realidade, não há muito mais espaço para deixar radiodifusão e telecomunicação falando sobre as mesmas coisas em campos opostos.


Tanto num caso quanto no outro – isto é, tanto no campo da convergência quanto no da definição de um projeto brasileiro de TV digital – é muito mais produtivo, hoje, trabalhar sobre a possibilidade de construção de consensos do que sobre as confrontações. Por que é mais produtivo? Por conta da irreversibilidade do avanço tecnológico e das complementaridades que são capazes de beneficiar a todos.


Isso é visível de qualquer ponto que se eleja para observar a questão. Não se pode, por exemplo, imaginar para o futuro imediato uma forma de televisão que não siga os padrões do que é chamado hoje de alta-definição. Desde 1987, quando a japonesa NHK começou (com a Sony, a Mitsubishi e outros fabricantes de equipamentos profissionais) suas transmissões em HDTV analógico, já era claro que os padrões vigentes na época (NTSC, PAL, Secam) estavam com os dias contados.


Naquele momento, estimava-se em 30 a 40 mil dólares o custo de um receptor doméstico. Hoje, alguns dos melhores receptores de plasma em HDTV, com padrão de 42 polegadas, são comercializados nos Estados Unidos a menos de 3 mil dólares. (Por exemplo, o Panasonic TH42P, a 2.800 dólares; o Samsung HP R4272, a 2.600 dólares; ou o JVC PD42X, a 2.000 dólares, todos evidentemente operando no padrão norte-americano ATSC, portanto inviáveis para utilização no Brasil).


Isso lembra também que a televisão em alta-definição não é atributo específico das plataformas digitais. Foi concebida muito antes disso. O desafio da compressão e o avanço da tecnologia digital é que associou uma coisa à outra. As plataformas digitais servem, de qualquer forma, a fins que abrangem – mas vão muito além – a melhoria na qualidade da imagem e do áudio.


Os radiodifusores terão certamente dificuldades em digerir algumas propostas expressas seguidamente por outros setores da atividade audiovisual. Entre essas propostas, incluem-se a de que todo conteúdo veiculado no SBTVD seja gratuito, ou que a tecnologia deva servir exclusivamente ao expresso no Decreto 4901 (promoção da diversidade cultural, inclusão digital e democratização da informação) em detrimento da sofisticação das formas de comercialização de seus produtos.


Por outro lado, muito do que vem sendo defendido fora das emissoras pode servir de base para a construção de consensos que tornem mais palatável o debate, especialmente no que diz respeito à valorização das culturas regionais e das potencialidades interativas da nova mídia.


Compromisso constitucional


Mais do que isso. Não é plausível que alguém tenha seriamente em mente a ilusão de que o atributo da alta-definição servirá apenas para que se aprecie com mais detalhes as fisionomias do Faustão ou do Gugu. Mesmo quem sustenta com toda convicção que a televisão é um negócio fechado a quem hoje detém as concessões, há de reconhecer que os atributos proporcionados pelas novas plataformas – onde se inclui a capacidade interativa – deverão servir à construção de conteúdos específicos. E que isso não se esgota no cuidado maior com a cenografia ou a maquiagem da teledramaturgia.


É claro que as redes estão pensando nisso, mas não se pode querer que emissoras de televisão sejam ao mesmo tempo exibidoras, produtoras e centros de pesquisa. Há importantes propostas de desenvolvimento de modelos de conteúdo que não estão nascendo dentro das emissoras. Novos paradigmas tecnológicos criam novos paradigmas de construção de conteúdo. Disso não há como escapar.


Muito da aridez criativa que se observa na televisão analógica – e certamente migrará para a televisão digital – poderia ter sido contornada se houvesse alguma disposição em se saber o que o público está pensando sobre o que lhe é oferecido. Isso é feito sistematicamente na televisão inglesa, por exemplo. Medições de audiência, como se sabe, não aferem o grau de satisfação do público, muito menos as suas demandas. Apenas registram a sua escolha circunstancial entre um conjunto limitado de opções.


É compreensível a determinação dos radiodifusores em manter nas plataformas digitais os mesmos modelos de negócio que eles vêm praticando até agora, assim como é justificável a demanda de setores sociais por um ambiente mais, digamos, arejado.


Mas é um grande desperdício que estejamos perdendo esse momento de mudança administrando interesses, mas sem investigar o que o público brasileiro gostaria que fosse a sua televisão. Quem está e quem não está cumprindo o compromisso constitucional que assumiu com a população. E qual o ganho que a sociedade terá com os 10 bilhões de dólares que serão investidos nos próximos anos na sua televisão.